Maria do Carmo Leal

Cadernos de Saúde Pública

Nascendo no Brasil, uma entrevista com a professora Maria do Carmo Leal. Duas das editoras dos Cadernos de Saúde Pública, Marília Sá Carvalho e Luciana Dias de Lima, conversaram com a docente do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Conhecida por colegas e alunos como Duca, ela coordenou a pesquisa Nascer nas Prisões, cujos dados foram utilizados na argumentação a favor do habeas corpus coletivo para que as grávidas e mulheres que têm filhos até 12 anos fiquem em prisão domiciliar. Vitória importante dos direitos humanos.

Antes disso, Duca coordenou a pesquisa nacional sobre Nascer no Brasil, cujos resultados vêm sendo trabalhados por diversos setores, seu grupo inclusive, para fazer do parto uma experiência positiva, sob o controle das próprias mulheres. É a pesquisa epidemiológica voltada para a intervenção na saúde coletiva. Confira um trecho da entrevista, na íntegra:

Cadernos de Saúde Pública: Duca, queríamos começar perguntando por que e como você escolheu seus temas de pesquisa, e como é a sua história neste tema, saúde da mulher e da criança?

Duca: Eu comecei o meu trabalho como pesquisadora em Saúde Pública estudando hipertensão arterial, um problema do adulto, e trabalhei com esta questão no meu mestrado em 1980. Eu já tinha alguma formação em epidemiologia lá na Universidade Federal da Bahia (UFBA), trabalhando com Sebastião Loureiro. Inclusive o meu primeiro inquérito, lá na Bahia, foi com um grupo de mulheres muito marginalizado, as prostitutas do Pelourinho, na época em que o governo estava fazendo a remoção delas daquela área para recuperar a parte histórica de Salvador para o turismo.

Quando cheguei na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) recém-formada, para fazer o curso de Saúde Pública, um curso revolucionário àquela época, fui chamada para fazer parte da equipe do 1º inquérito populacional sobre hipertensão arterial, no Rio Grande do Sul. Foi um inquérito muito bem feito, eu aprendi muito. Um tempo depois, apareceu a oportunidade de participar do Programa Ampliado de Imunizações (PAI) e me envolvi muito com os programas de imunização, com as campanhas de vacinação. Na época havia uma discussão na esquerda e dentro da ENSP, que não seria correto apoiar as campanhas de vacinação, pois elas significavam um investimento pontual, em uma necessidade específica de saúde, mas não resolveria o problema fundamental que era a necessidade de uma atenção integral, com investimento em serviços rotineiros de saúde, na atenção primária, com integração com outros níveis de cuidado. Estávamos no início dos anos 1980, ainda na ditadura militar.

Cadernos de Saúde Pública: Pois é, se acreditava que havia uma contradição entre uma coisa e outra.

Duca: E foi sofrido pra mim, pois quando eu via aquela discussão, eu pensava: “não está certo, vamos ter de apoiar essa inciativa e participar”. Porque sarampo ainda matava muito nos anos 1980 e eu pensava que se não podemos fazer tudo era importante fazer o que fosse possível para prevenir mortes infantis. Então entramos nessa frente e você, Marilia, também entrou.

Em 1984, fiz um projeto de pesquisa para estudar a etiologia das diarreias, que à época era causa muito importante de óbito infantil. Esse estudo foi financiado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e com este recurso conseguimos comprar um dos primeiros microcomputadores da nossa escola, pois não havia por aqui. Nessa época comecei nessas questões na saúde da criança e depois fui estudar a mortalidade infantil. Fizemos, Paulo Sabroza e eu, um projeto para a Empresa Brasileira de Inovação e Pesquisa (Finep) no final dos anos 1980 sobre a mortalidade infantil na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Depois, eu fui estudando a mortalidade infantil, me envolvendo com a análise da qualidade dos dados nos sistemas de informação, junto com a Célia Landmann Szwarcwald, minha companheira em muitos estudos.

Nessa época eu era da comissão de epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), fui muitos anos, acho que uns 15 anos. Montamos os primeiros congressos, planos diretores da epidemiologia no Brasil e os cursos de formação para os serviços de saúde com as instituições de ensino. Primeiro foram os cursos de especialização, depois os mestrados profissionais.

Como pesquisadora, meu envolvimento foi cada vez maior com a mortalidade infantil, que aos poucos foi se tornando neonatal e se aproximando do momento do parto. Atualmente, 52% dos óbitos ocorrem na primeira semana de vida, mas destes, a metade no primeiro dia após o nascimento, ou seja, em torno do parto. Fui amadurecendo a necessidade de estudar o parto e o nascimento. Fomos verificando também que eram poucos os grupos de pesquisa trabalhando nesse campo com uma visão de saúde pública. Se na área da criança tínhamos muitos e excelentes grupos, como os grupos das coortes de Pelotas, Ribeirão Preto e Maranhão, dentre outros, na área da mulher somente o grupo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tinha estudos de grande porte. Na nossa cronologia, estávamos já em meados da década de 2000.

Cadernos de Saúde Pública: A maioria dos estudos com a mulher era somente relacionado à saúde da criança.

Duca: Era uma forma nossa de enxergar a mulher apenas como mãe. Nós fomos descobrindo aos poucos que quando entramos para estudar a mortalidade da criança, em torno do parto, estávamos sem ver a mulher, víamos apenas a gestante. Se a criança está morrendo quando nasce, provavelmente a mulher também está morrendo, por problemas comuns.

A mulher fica esquecida, ou foi relegada, digo, até por nós mesmos, nosso grupo de pesquisa. Mas fomos aos poucos tomando o partido da mulher e atualmente publicamos mais com temas da mulher do que da criança, porque é uma área pouco trabalhada, quase abandonada e que temos de olhar com muita atenção, porque esta sociedade não vai melhorar enquanto não diminuir o desinteresse pela mulher, que é uma expressão do machismo que nos constitui.

Acho que essa questão do machismo nos arruína como sociedade, que, combinado com a convivência acrítica com essa desigualdade social enorme que temos, faz de nós uma sociedade perversa. Se acrescermos a isso o racismo, a intolerância com as diferenças étnicas… Não somente a população negra, os indígenas também. São questões gravíssimas que a gente tem.

Nosso primeiro projeto sobre a mortalidade perinatal, com ênfase na atenção ao parto, foi em cooperação com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Esse projeto, de âmbito municipal, foi o protótipo, o laboratório para o Nascer no Brasil. No nosso próximo inquérito sobre parto e nascimento, o Nascer no Brasil II, nós vamos introduzir a temática do aborto.

Cadernos de Saúde Pública: Antes de chegar aí, a gente tinha algumas questões. Por exemplo, você está falando de desigualdades, o que você tem a dizer sobre as desigualdades regionais no Brasil? Porque, se bem me lembro, era brutal a diferença da mortalidade infantil. Lembro da época em que analisei isso, há muitos anos atrás, eram 200 por mil, um absurdo, no interior do Ceará, e o Rio de Janeiro estava em 60 por mil nascidos vivos. Mas agora mudou.

Duca: Mudou muito, e o que aconteceu nesses últimos 15 a 20 anos é que as diferenças regionais diminuíram bastante na mortalidade infantil. A mortalidade infantil no Brasil está em torno de 13 por mil nascidos vivos, no Rio de Janeiro está em 12 e nos estados do Nordeste 17, não muito acima. Quando comparada à de países desenvolvidos, temos 4 a 5 vezes mais óbitos.

E a mortalidade materna? Esse é um problema porque creio que esse indicador no Brasil é muito pior do que o da mortalidade infantil. O que tem a ver com a falta de valor, discriminação, com a falta de lugar para a mulher na sociedade, que termina por não cuidar dela da forma adequada. Cuidou-se muito mais da criança, fez-se um investimento grande para reduzir a mortalidade infantil e se obteve sucesso. Como visto, diminuiu muito a diferença entre as regiões e também entre os grupos sociais, mas na mortalidade materna nós temos um padrão que, se por um lado reflete também as diferenças regionais (variando entre 40 e 70 óbitos por 100 mil nascidos vivos entre as regiões mais ricas e mais pobres) e entre os grupos sociais, por outro, nos coloca em uma situação muito desconfortável, quando comparada a dos países desenvolvidos. Eles têm esse indicador 6 a 10 vezes menor que o nosso. Aliás, se considerarmos os estados do Brasil separadamente, em alguns nós temos valores mais elevados que 100 óbitos por 100 mil nascidos vivos, muito acima da média nacional que é de 60.

Cadernos de Saúde Pública: E nesses 60 do Brasil, acho que há problema de estimação, porque nós não temos dados de boa qualidade nessa área não. Eu estava lendo que há uma queda na mortalidade materna…

Duca: Também houve uma melhora na notificação da mortalidade materna. Em anos mais recentes, a investigação de óbitos de mulheres em idade fértil ampliou muito, aliás, um trabalho que foi inicialmente conduzido pela Célia Landmann Szwarcwald, sob a forma de uma pesquisa. Muitos óbitos que não são considerados óbito materno, são, de fato. Então, todos, 100% dos óbitos ocorridos em mulheres em idade fértil começaram a ser investigados, inclusive no Rio de Janeiro, e em mais outros estados. Não temos essa cobertura na investigação para todo o Brasil, mas atualmente entre 70%-80% desses óbitos estão sendo investigados. Isso melhorou o registro, de forma que a não queda também tem a ver, em parte, com a melhora do registro. Entretanto, não há explicação aceitável para a mortalidade materna ser tão alta. Recentemente, escrevemos um artigo para a Enciclopédia de Saúde Pública da Oxford, que o Paulo Buss coordenou para a região da América Latina, e nos surpreendemos com os dados de Cuba: tem a menor mortalidade infantil da América, igual à do Canadá, de 6 por mil nascidos vivos, mais baixa que a dos Estados Unidos, porém, tem uma taxa de mortalidade materna alta, de 30. Para confirmar a minha hipótese da desvalorização da mulher latino-americana.

Isso é um dado radical, o óbito materno, mas eu estou ressaltando que o machismo da nossa sociedade latino-americana tem a ver com isso, com a desvalorização e falta de cuidado com a mulher, dado que a maioria dessas mortes é evitável.

Cadernos de Saúde Pública: E a proibição do aborto?

Duca: É a quarta causa da mortalidade materna no Brasil, é uma causa expressiva. Isso porque não é tudo investigado, eu suponho que seja maior. O aborto como causa de morte deve estar subnotificado porque é crime. As mulheres omitem.

Cadernos de Saúde Pública: A primeira causa de mortalidade materna é?

Duca: Hipertensão, hemorragias, infecções e aborto. Praticamente tudo é evitável. Nos países desenvolvidos predominam causas menos ou mesmo não evitáveis, mortes ligadas a doenças que a mulher traz. Por exemplo, lupus, doenças autoimunes, que são complicadas. Então, a maioria é causa indireta de morte, não é causa direta. No nosso caso, quase tudo é causa direta, que se bem tratadas num pré-natal adequado e/ou com uma boa atenção no parto, as mulheres não morreriam.

O pré-natal é fundamental para todos os resultados obstétricos e perinatais, mas o momento do parto tem grande importância. Já é conhecido o papel fundamental que têm as três demoras no atendimento ao parto para complicações obstétricas graves e o óbito materno: a primeira relacionada à percepção do problema pela gestante, que vai ser tanto mais precoce quanto mais informada ela for; a segunda, diz respeito à demora em chegar ao serviço de saúde; e a última, a demora para ser atendida adequadamente depois que chega ao serviço de saúde. Todas elas, como podem imaginar, aumentam em mulheres com piores condições sociais e que vivem em lugares sem uma boa assistência ao parto. São casos dramáticos, por exemplo, de um sangramento cuja demora na percepção da gravidade, no atendimento e na efetividade do tratamento é fatal. O mais incrível no Brasil é que a elevadíssima taxa de mortalidade materna convive com 99% dos partos ocorrendo dentro de um hospital. Não era para estar assim, pois, de alguma forma, o acesso está garantido para todas.

Cadernos de Saúde Pública: Deixa eu fazer uma ponte agora. Como você leva essas coisas que você está nos contando para enfrentar o problema da saúde pública no país? Umas das discussões atuais da epidemiologia é o retorno do foco para a intervenção, para a saúde pública. Eu acho que você tem uma grande experiência nesse sentido. Conta para a gente.

Duca: É mesmo, isso tem a ver, como eu disse no início, com essa coisa da saúde pública e a epidemiologia aqui no Brasil ter sido sempre muito misturada com os serviços de saúde, gerando um compromisso mútuo muito grande. A própria Abrasco, que é a nossa associação, é também a associação dos profissionais de saúde pública dos serviços de saúde. Associações, por exemplo, de epidemiologia, são associações de cientistas em outros países. Aqui não, a nossa é miscigenada, no bom sentido, ela incluiu o pessoal do serviço, o sanitarista. Temos esse compromisso de que as pesquisas não podem morrer com a publicação e nem com a realização de teses dos alunos. O compromisso é também de devolver para a sociedade, para os serviços de saúde, para os profissionais. E isso é uma coisa muito forte dentro do nosso grupo de pesquisa. Então, quando a gente viu essa situação tão ruim da assistência ao parto e ao nascimento, nos posicionamos com a intenção de participar do movimento de mudança.

O contato com as experiências de atenção ao parto em países desenvolvidos e toda a discussão sobre a necessidade de reforçar a autonomia da mulher para que ela possa ter o parto que ela quiser, fizeram toda a diferença para o nosso grupo de pesquisa, que é também de militância pela causa da maternidade feliz e autônoma. Digo mesmo que eu voltei muito injuriada com a nossa situação no Brasil depois que eu vi como são tratadas as gestantes e como nascem as crianças nesses países, comparando com o que nós fazemos aqui.

Cadernos de Saúde Pública: Estamos muito distantes dessa realidade?

Duca: Muito distantes. Em Londres eu fui num hospital universitário que tem a área da maternidade quase toda ocupada pelas midwives. E o que as separa da área obstétrica é uma porta. A maioria dos quartos não tem aspecto de hospital, com equipamentos embutidos na parede, parece um quarto de casa. Mas, se necessário, está tudo ali. E o companheiro dela, ou quem ela escolher para acompanhante, fica com ela, isto é assegurado. Tem banheiras, mas nem todas as mulheres desejam ter os filhos dentro d'água, embora possam se quiserem. A área para deambulação durante o trabalho de parto é muito ampla, cheia de plantas, climatizada para ter plantas o ano todo e com música suave, relaxante. A música ajuda as mulheres a se acalmarem e esse espaço tão agradável e silencioso permite o contato com elas mesmas, com seus bebês.

É um grande contraste com o que se vê por aqui, com as nossas mulheres pobres. O sistema de saúde inglês atende a todos, as mulheres que vi eram pessoas simples, mas estavam muito bem tratadas. Eu tive uma plena lição de cidadania, o que é receber uma criança, um cidadão inglês. Aqui não, as mulheres são maltratadas, gritaria, sofrimento, falta de espaço físico e de atenção. A luta das midwives é pelo cuidado uma a uma, ou seja, para cada mulher uma midwife, cuidado em tempo integral e dedicação exclusiva. Há também uma grande luta das midwives contra o excesso de trabalho burocrático, gastando muito tempo para anotar todos os procedimentos por causa dos processos que ocorrem, a judicialização da saúde.

Cadernos de Saúde Pública: Mas isso está sendo geral, uma das crises do National Health Services (NHS) é que toda a burocracia passou a ser dos médicos em nome de “vamos economizar”. Então, você economiza secretárias para o registro e bota o peso nas costas de quem devia estar principalmente assistindo a população. Nossas enfermeiras também estão muito sobrecarregadas.

Duca: Isso também ocorre aqui, em maior intensidade, eu acho. Mas as midwives inglesas também lutaram para alcançar esse lugar que têm na assistência ao parto. Elas foram muito importantes para espalhar para o mundo esse modelo de atenção ao parto menos intervencionista e focado na mulher. Eu as conheci num congresso chamado Normal Labor and Birth Conference, em 2011, quando eu fui pela primeira vez. Gostei muito e tive a surpresa da pequena presença de médicos obstetras e pediatras, quase todos os participantes eram midwives. Acho que tem uma certa separação entre eles lá também. Mas funcionam de uma forma respeitosa, são parceiros, têm um compartilhamento de trabalho que se expressa nessas ocasiões. Nós não tínhamos isso aqui, mas acho que agora estamos dando passos nessa direção. No XXII Congresso Mundial de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO 2018) que acontecerá no Brasil este ano, a direção da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO), irá para a mesa de abertura. Estamos começando a dar passos importantes de civilidade e companheirismo.

Cadernos de Saúde Pública: Eu quero te perguntar sobre o que vem ocorrendo no SUS.

Duca: No SUS foi a Rede Cegonha, um programa que já vem se organizando desde 2011. É um programa que retoma os compromissos, os princípios de garantia do acolhimento das mulheres, com avaliação e classificação de risco, melhoria da qualidade do pré-natal, garantia da vinculação da gestante à maternidade e melhoria da atenção ao parto e nascimento, e acompanhante de livre escolha em todos os momentos da internação para o parto. Além disso, se compromete com a oferta de atenção à saúde das crianças de 0 a 24 meses com qualidade e com o acesso às ações do planejamento reprodutivo. O programa criou uma metodologia de intervenção que contava, dentre outras atividades, com um facilitador, contratado pelo Ministério da Saúde, para trabalhar nas maternidades junto com a equipe local, para processar as mudanças. Também investiu recursos para modificar a ambiência das maternidades: obras para adequar o espaço físico para as mulheres deambularem, comprou poltronas para acompanhantes, leitos PPP (pré-parto, parto e pós-parto), de maneira que a mulher não precise ir ao centro cirúrgico para parir porque o parto não é uma questão cirúrgica. Além disso, buscou criar uma rede de apoio à atenção ao parto, organizando inclusive essa questão da vinculação, da referência, e criou algumas Casas da Gestante que são casas para abrigar mulheres que vêm do interior, que não têm facilidade de acesso, mas têm complicações na gestação. Também para mães que precisavam acompanhar seus filhos que necessitavam de internação em unidade de tratamento intensivo (UTI).

Foi uma pena que poucas dessas casas foram criadas. A ideia era criar uma rede de proteção para que a mulher não peregrinasse, para que o pré-natal melhorasse sua qualidade. Em 2017, nosso grupo, junto à equipe da Universidade Federal do Maranhão, avaliou a Rede Cegonha. Visitamos 640 maternidades do SUS que atendem juntas à metade dos partos do país, e os primeiros resultados mostraram que melhorou a atenção ao parto no sistema público.

Cadernos de Saúde Pública: Quais as principais dificuldades para avanços mais substantivos?

Duca: Eu acho que ainda há uma grande incompreensão por parte dos médicos, não de todos, sobre as vantagens do parto normal principalmente com a centralidade da mulher na sua condução, em relação à cesariana. A cultura da cesariana como a melhor solução para a mulher foi criada aqui no país e nós vimos que é uma opção conveniente para otimizar o trabalho do obstetra no atendimento ao parto. Então, muitos argumentos são usados para justificar essa escolha, desde os riscos para deslocamentos noturnos dos médicos nas cidades grandes, até o baixo valor pago pelos planos de saúde pela assistência ao parto. Mas os médicos, os obstetras, têm de centrar suas escolhas na melhor evidência científica e, para o parto sem complicação obstétrica, a grande maioria dos partos, a recomendação é o vaginal. Mas vejo que estamos num processo de mudança. Muitos jovens obstetras, embora formados em escolas cesaristas, estão optando pelo parto vaginal. Aqui nas maternidades públicas da cidade do Rio de Janeiro uma expressiva parte dos partos é atendida por enfermeiras obstetras. Esse programa no Rio de Janeiro tem aproximadamente 30 anos e mostra o trabalho colaborativo entre médicos e enfermeiros, o que vai moldando uma nova mentalidade de convivência e respeito mútuo entre estes profissionais. Os jovens médicos também se formam num novo contexto da prática clínica, baseada em protocolos, que por sua vez se baseiam em evidências científicas e sabem dos riscos da cesariana para a mulher e para o bebê. Também no setor privado já está acontecendo essa mudança, e esse compartilhamento de espaço da atenção ao parto com os enfermeiros parece uma tendência sem retorno. O enfermeiro obstetra é o profissional de escolha segundo a OMS para a condução da atenção ao parto, por se associar na literatura com os melhores resultados obstétricos. Mas isso está longe ainda de ser equacionado no Brasil.

Cadernos de Saúde Pública: Deixa eu te perguntar agora que a gente está chegando perto do fim, o que te levou ao estudo Nascer nas Prisões?

Duca: Pois é, pesquisar o parto e nascimento nas prisões ocorreu por um convite de amigos que trabalham com a saúde prisional, a Alexandra Sánchez e o Bernard Larouzé, que vinham há muito tempo me seduzindo para trabalhar com a questão das mulheres encarceradas. Eu tive medo, não queria me envolver com algo tão pesado e triste. Mas, depois de muito insistir, conseguiram me convencer. Foi o trabalho de pesquisa mais difícil que tivemos, pois o cárcere é fechado com muitas chaves. São muitas barreiras para conseguir entrar e também para realizar a pesquisa. As mulheres vivem em condições muito precárias, em profunda solidão, falta atenção pré-natal, falta todo tipo de cuidado. Elas sofrem muito porque ficam com o bebê no colo durante seis meses e um dia o bebê vai embora. É algo desesperante para elas e, suponho, principalmente para as crianças. Oitenta por cento delas têm outros filhos e quando são presas seus filhos são geralmente repartidos entre familiares, amigos ou mesmo vão para abrigos, desorganizando totalmente a família. Acabamos nos envolvendo muito e o projeto resultou em muitas coisas: na produção de diretrizes de convivência mãe e filho para o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) e na nossa participação no processo do habeas corpus em favor de todas as mulheres submetidas à prisão provisória para ficarem em prisão domiciliar se estiverem na condição de gestantes, puérperas ou de mães de crianças com deficiências e até 12 anos de idade. Nós entramos com o processo pela Abrasco e os dados da pesquisa foram citados no parecer final. Nós ficamos muito emocionados porque tivemos a ousadia de participar disso e o resultado foi favorável para essas mulheres. Esse estudo sobre a maternidade encarcerada era composto de vários subprojetos, tinha a parte de Arquitetura, do Direito, Psicossocial e da Saúde. Essas quatro dimensões deram essa compreensão mais ampla da questão. Além de coordenadora geral, eu coordenei, em particular, o componente da saúde. Fizemos um censo na saúde e os outros componentes foram analisados em quatro presídios. A Luciana Simas, que é uma advogada jovem, muito inteligente, foi quem redigiu essa petição do amicus curiae. Foi ela foi quem escreveu e defendeu no Supremo Tribunal Federal (STF), na linguagem jurídica adequada para sermos escutados. E foi importantíssimo termos entrado, a Abrasco ter nos acolhido... Como falei, fizemos também uma matéria no Radis e os vídeos. Os vídeos estrearam na época do habeas corpus e foi importante para comover a sociedade sobre o sofrimento dessas mulheres. Começou a ser debatido em cineclube, sabia? Vários cineclubes fazendo sessão com o vídeo para discutir o encarceramento de grávidas e a maternidade no cárcere. É emocionante, né?

Cadernos de Saúde Pública: Na mesma linha de raciocínio, eu queria que você falasse da questão do aborto. O STF está fazendo uma consulta sobre a legalidade, diga o que você sabe e o que gostaria de fazer.

Duca: No próximo Nascer no Brasil o aborto em mulheres hospitalizadas vai ser contemplado pelo estudo. Foi um pedido do Ministério da Saúde, muito bem aceito por nós.

Cadernos de Saúde Pública: Você tem o dado de quantos abortos inseguros acontecem anualmente no Brasil?

Não, há uma estimativa de que era um terço dos nascimentos. Nós estamos nos preparando com o intuito de participar da consulta pública que será feita à sociedade pelo STF sobre a descriminalização do aborto. E essa vai ser uma batalha muito forte, pesada. Nós nos inscrevemos como Fiocruz para participar, temos alguns dados do Nascer no Brasil sobre a gravidez não pretendida que é muito alta, de 55% para o conjunto das gestantes no Brasil. É claro que a maior parte das mulheres fica feliz depois com a notícia da gestação, mas encontramos 10% das puérperas dizendo que não estavam satisfeitas com aquela gestação mesmo depois do bebê ter nascido. Essas, de fato, não queriam ou não podiam ter aquele bebê naquele momento das suas vidas.

Cadernos de Saúde Pública: Você é uma mulher corajosa.

Duca: Eu já padeci muito, mas não desisto fácil. E espero muito que juntas, nós, mulheres, mudemos o lugar que temos na sociedade brasileira. Contando com a participação dos homens.

 

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