Josué Laguardia debate Ciência Aberta e Governo Aberto na pandemia

Flávia Lobato (Portal de Periódicos Fiocruz) | Foto: Raquel Portugal (Multimeios Fiocruz)

Saúde é democracia – logo, abertura ao conhecimento. Na crise sanitária, a pauta está na ordem do dia: no dia 18 de junho, às 14h, acontece o 2º Encontro Nacional de Ciência Aberta e Governo Aberto. No webinar, que terá transmissão online, será discutido o papel deste movimento face à pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e questões relativas ao 4º Plano de Ação Brasileiro (2018-2020) da Parceria pelo Governo Aberto (Open Government Partnership - OGP).

O debate será mediado por Josué Laguardia, que está à frente da Coordenação de Informação e Comunicação, ligada à Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ele é doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e tem vasta experiência como pesquisador e professor, desenvolvendo estudos de avaliação de desempenho do sistema de saúde brasileiro e qualidade de vida, com ênfase em temas como: registros de ensaios clínicos, avaliação psicométrica de questionários, raça e educação on-line.

Em entrevista ao Portal de Periódicos Fiocruz, o pesquisador fala sobre desafios e perspectivas para a ampliação de uma cultura da Ciência Aberta no país, comentando iniciativas de gestão da informação e do conhecimento em saúde que vêm sendo impulsionadas. Laguardia aborda também temas referentes às publicações e divulgação científica, comunicação pública, transparência, combate às fakenews e participação social — num painel que evidencia a importância do diálogo e da colaboração na busca de soluções coletivas. Leia a entrevista a seguir e participe do debate.

Portal de Periódicos Fiocruz: Você assumiu a Coordenação de Informação e Comunicação no contexto desafiador da pandemia de Covid-19. Quais são as prioridades da gestão para a área neste momento?
Josué Laguardia:
Sem dúvida, é um grande desafio. Ingresso na Coordenação já com um elenco de atividades em curso. A primeira é a Consolidação da Consulta Pública da Política de Gestão, Compartilhamento e Abertura de dados da Fiocruz, que em breve será submetida ao Conselho Deliberativo (CD-Fiocruz). Outra iniciativa prioritária é implantar o repositório de dados abertos da Fundação, que faz parte da parceria do 4º Plano de Ação Nacional em Governo Aberto. Para isso, temos que concluir a elaboração do relatório da primeira fase do piloto de testes da plataforma Dataverse. A terceira é preparar a infraestrutura para a fase 2: a partir de julho, será depositado um conjunto de dados de pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas, biomédicas e epidemiológicas, realizadas por pesquisadores da Fiocruz. O objetivo é construir uma solução que contemple as necessidades e realidades institucionais. Neste sentido, estamos trabalhando em articulação com grupos de profissionais da Coordenação-Geral de Gestão de Tecnologia de Informação, da Casa de Oswaldo Cruz e do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde.

Vale salientar, ainda, as atividades do Observatório em Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da Fiocruz, assim como o estabelecimento de acordos de cooperação técnica com instituições nacionais para implementar o repositório institucional. Além disso, estamos adaptando os cursos da Formação Modular em Ciência Aberta (na modalidade de educação a distância – EAD) para que sejam oferecidos como uma disciplina transversal em nossos programas de pós-graduação. Por fim destaco a iniciativa da Coordenação, que logo no começo da pandemia criou uma biblioteca temática sobre o novo coronavírus (Covid-19) na plataforma Zotero, apoiando as atividades de pesquisa, gestão e assistência frente à pandemia. A biblioteca possibilita a gestão e compartilhamento de referências, reunindo publicações e arquivos de todos os tipos. A atualização é diária: atualmente, há cerca de 20 mil publicações com texto completo e quase 450 membros compartilhando este conteúdo e links.

Tudo isso se alinha ao objetivo de que a Política de Gestão, Compartilhamento e Abertura de Dados para a Pesquisa da Fiocruz esteja vigente até o fim deste ano.

PP: No dia 18 de junho, você será o mediador do 2º Encontro Nacional de Ciência Aberta e Governo Aberto. Externamente, há uma maior pressão da sociedade quanto ao papel das instituições públicas, que são estratégicas para responder à crise. Ao mesmo tempo, a pandemia induz a própria comunidade acadêmico-científica a refletir sobre práticas e cultura da Ciência Aberta. Neste cenário, como você tem observado a adesão a este movimento?
Josué Laguardia:
Noto que a pandemia provocou uma mudança, que pode ser temporária, no acesso aberto às publicações relativas à Covid-19 por parte dos grupos editoriais internacionais. Algumas iniciativas também ganharam espaço, por exemplo: foram lançados repositórios de preprints (como o da SciELO e o NIH Preprint Pilot in PubMed Central); ampliou-se a discussão global sobre acesso e abertura dos dados dos casos de Covid-19; surgiram mais ferramentas para identificar fakenews, além de vários painéis nacionais e internacionais de monitoramento da pandemia (frutos de iniciativas de órgãos de saúde, instituições de ensino e pesquisa, como a Fiocruz, ou de grupos de pessoas interessadas em divulgar informações sobre a doença). Ou seja: essa discussão sobre a importância do acesso aos dados e sua qualidade não ficou restrita aos profissionais e pesquisadores da saúde, gerou manchetes em jornais e revistas, foi objeto de programas de debates e teve espaço nas redes sociais.

PP: O encontro nacional é uma iniciativa relacionada ao 4º Plano de Ação Brasileiro (2018-2020) da Parceria pelo Governo Aberto (Open Government Partnership - OGP). Os debatedores do webinar serão a diretora da Open Knowledge Brasil (OKBR), Fernanda Campagnucci, e o coordenador do Programa de Computação Científica da Fiocruz (PROCC), Daniel Villela. Em relação ao trabalho que vem sendo desenvolvido por estes atores e instituições, que ações destaca?
Josué Laguardia:
A OKBR, também conhecida como Rede pelo Conhecimento Livre, é uma organização que atua na área de transparência e abertura de dados públicos nos portais e sites dos governos estaduais e federal. Nos últimos anos, tem realizado um trabalho muito relevante para a sociedade. Na pandemia, ressalto o desenvolvimento e o incentivo ao uso de tecnologias cívicas e de dados abertos, análises de políticas públicas e a promoção do conhecimento livre, para que a relação entre governo e sociedade seja mais transparente e participativa. Mais especificamente, destaco a produção do Índice de Transparência da Covid-19, que avalia a qualidade dos dados e informações relativos à pandemia publicados pela União e pelos estados brasileiros em seus portais oficiais.

Já o PROCC é responsável pelo Infogripe, que monitora os casos reportados de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), em conjunto a Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e do GT-Influenza da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.

Os debatedores vão trazer tanto a experiência de coordenar essas iniciativas quanto a apresentar perspectivas distintas, mas complementares. Vão abordar os principais aspectos que permeiam o debate sobre o acesso aberto aos dados governamentais no enfrentamento à pandemia, avaliando usos de dados abertos para a saúde da sociedade, barreiras e perspectivas. Um ponto central para esta discussão: mais transparência contribui para agilizar o trabalho dos órgãos públicos e facilita o envolvimento de outros setores da sociedade na construção de soluções conjuntas com o poder público.

PP: Pensando nas relações entre pesquisa, publicação científica, formulação de políticas públicas embasadas por evidências... Na emergência ganha ainda mais força a “economia de reputação: publicar ou morrer”. Soma-se a isso a aceleração dos processos editoriais (proliferação de preprints, adoção de fast tracking, maior abertura para acesso aos artigos sobre Covid-19 em editoras comerciais e a ampla disseminação na mídia em geral e nas redes sociais). Quanto aos desafios da editoria científica e ao papel de quem “qualifica e valida” o conhecimento, o que muda com a Ciência Aberta?
Josué Laguardia:
Recentemente, vimos a retratação de artigos sobre Covid-19, alguns deles publicados em prestigiadas revistas internacionais. Esses episódios repercutiram de uma forma muito negativa, revelando as debilidades de um determinado modelo de publicação (objeto de críticas nas últimas décadas), quando submetido a políticas de fast track e à corrida pelo ineditismo. Se os artigos tivessem sido publicados como preprints, com dados abertos de pesquisa, os pares poderiam fazer uma revisão aberta. A exposição desses artigos às críticas de profissionais especializados nos temas sob estudo oferece aos editores científicos das revistas um conjunto de elementos suficientes para recusar a publicação desses artigos.

PP: Entre os cientistas e a população, tem uma crise no caminho: é maior a demanda por informações transparentes e o interesse por resultados de pesquisas relacionadas à saúde (e suas interfaces com outros campos do conhecimento). Tudo isso recai na questão: afinal, como a sociedade pode se beneficiar da Ciência Aberta, na prática?
Josué Laguardia:
Pensar nas boas práticas da Ciência Aberta aplicadas à pandemia nos dá uma dimensão dos ganhos para a sociedade. Temos a publicação dos artigos, dados, métodos e metadados para descrição dos resultados de pesquisa, assegurando a sua replicabilidade; o registro e descrição dos fluxos de trabalho, equipamentos e infraestruturas utilizadas no processo de pesquisa; o depósito dos resultados das pesquisa sobre Covid-19 em repositórios institucionais ou disciplinares, a fim de garantir a sua integridade e preservação; são utilizados formatos abertos, software open source e normas, interfaces e licenças abertas para o acesso e a análise dos dados das pesquisas... Tudo isso amplia as possibilidades de desenvolver estratégias e soluções para a crise sanitária atual, seja o planejamento de medidas de isolamento, sequenciamento do genoma do coronavírus, o desenvolvimento de kits diagnósticos e vacinas, a implementação de protocolos terapêuticos. Os processos de abertura da Ciência tendem a aprimorar a comunicação. Mais do que isso, as práticas que compõe o movimento da Ciência Aberta facilitam o diálogo com a sociedade, fortalecendo a dimensão da Ciência Cidadã.

PP: Pensando nisso, que iniciativas têm apresentado potencial e vêm sendo impulsionadas no âmbito da gestão da informação e do conhecimento em saúde?
Josué Laguardia:
Destaco o desenvolvimento dos painéis de monitoramento da Covid-19 (MonitoraCovid-19 e Observatório Covid-19), iniciativas que foram impulsionadas pela urgência em dispor de informações atualizadas diariamente sobre a situação epidemiológica da pandemia no Brasil. Isso só foi possível porque, na Fiocruz, existem profissionais com expertise em ciência de dados, uma cultura institucional que incentiva o uso de softwares open source e o conhecimento acumulado ao longo de décadas no uso de dados governamentais para análise epidemiológica. 

Outro exemplo é o Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC), repositório temático que há 10 anos oferece o acesso às informações sobre pesquisas realizadas no país e a adoção de políticas de fast track para publicação dessas informações, tanto na epidemia de zika quanto na Covid-19, o ReBEC possibilitou um acesso oportuno, aos profissionais de saúde e pacientes, acerca das pesquisas em curso no Brasil referentes a esses agravos.

Além disso, pesquisadores da Fiocruz publicam notas técnicas que abordam as condições assistenciais na atenção primária e na média e alta complexidade, o impacto da Covid-19 na saúde dos trabalhadores e de populações vulneráveis. Isso mostra as potencialidades para a divulgação de informações que transcendem o modelo dos artigos científicos, ampliando as oportunidades de acesso.

PP: Na pandemia, também vemos a população debater achatamento da curva, capacidade dos sistemas de saúde (infraestrutura, disponibilidade de leitos, equipamentos, testes etc.), sistemas de informação (registros de casos e óbitos, subnotificação), entre outras questões. Como você avalia esse processo de comunicação pública da Ciência e do direito à informação como direito à saúde: é uma oportunidade de valorização do fazer científico?
Josué Laguardia:
De fato, essas discussões sobre o achatamento da curva, a oferta de leitos e respiradores e a subnotificação de casos, expuseram a população em geral aos conceitos básicos de saúde pública, e isso chamou a atenção de muitas pessoas sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e das ações de vigilância epidemiológica. Entretanto, há uma multiplicidade de achados de vários estudos e diferentes abordagens metodológicas, que podem servir a propósitos diversos — a favor ou contra o uso de um determinado medicamento, teste ou estratégia. Isso pode gerar mais dúvidas que certezas, e é amplificado com o uso das redes sociais, que muitas vezes propagam notícias sem identificar devidamente as fontes de informação. É possível gerar confusão inclusive entre os profissionais da saúde. Por isso, é muito importante atuarmos para estimular iniciativas que denunciem fakenews, promovam retratações públicas de artigos científicos, e disponibilizem informações atualizadas e de qualidade, geradas a partir de dados públicos — sempre de uma forma transparente e que possa ser apropriada por todos. Assim, contribuímos para o avanço da Ciência e dos governos abertos.
 

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