O campo da ciência avança de uma forma veloz. E quem atua nessa área precisa se adaptar às novas regras do jogo. Profissionalização da gestão editorial, boas práticas de publicação e comunicação científica, internacionalização, sustentabilidade, novas políticas orientadas pela ciência aberta. Essas são as linhas de ação prioritárias para os periódicos científicos, segundo o diretor do Programa SciELO/Fapesp (Scientific Electronic Library Online), Abel Packer*.
Ex-diretor da Bireme (Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS), Abel esteve na Fiocruz, no dia 26 de junho, para abrir o evento em comemoração aos 25 anos da Revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Sua palestra teve como tema “A emergência da ciência aberta e as funções dos periódicos na comunicação da pesquisa”.
No Dia Nacional da Ciência e do Pesquisador Científico (8/7), o Portal de Periódicos Fiocruz publica uma entrevista para aprofundar estas questões. Packer trata de políticas de publicação, da atuação da Rede SciELO, comenta o desempenho de periódicos da área da saúde e o novo contexto da editoria científica orientada pelos princípios da ciência aberta.
Leia a entrevista, na íntegra, a seguir:
Abel Packer: A política abarca todas as pesquisas financiadas pela Fapesp. Por conta do número de artigos envolvidos, essa medida contribuirá significativamente para o avanço do acesso aberto no Brasil. Nesse sentido, a política dá ênfase aos artigos publicados em periódicos não SciELO.
PP: No ano passado, a discussão sobre novas práticas editoriais para as revistas científicas e a transição para a ciência aberta foi tema do evento pelos 20 anos da SciELO. O tema pauta também o evento que celebra os 25 anos da HCS-Manguinhos, que você abriu no dia 26/6. A Rede SciELO, como comentou, contempla a “bibliodiversidade com assimetrias”. São 16 países, com publicações de várias áreas, e em diferentes condições e estágios de desenvolvimento. Sendo assim, como a transição dos periódicos está organizada, a curto e médio prazos, e que os critérios foram utilizados para definir as diretrizes prioritárias?
Abel Packer: As coleções nacionais da Rede SciELO são governadas, geridas e operadas de modo descentralizado, segundo prioridades, necessidades e características próprias de cada país. As linhas de ação prioritárias compreendem o avanço da profissionalização na gestão editorial, incluindo: a adoção de normas e boas práticas editoriais, a internacionalização (a fim de promover promover a presença dos periódicos e das pesquisas que comunicam no fluxo global de informação científica) e a sustentabilidade operacional e financeira.
A cada cinco anos, essas linhas prioritárias são atualizadas, e cumprem duas funções principais. Primeiro, promover a adoção de inovações da comunicação científica. Segundo, assegurar o alinhamento e a convergência das coleções nacionais em ritmos e intensidades que diferem de país a país. Na Semana SciELO 20 Anos foram aprovadas as diretrizes prioritárias para o período de 2019 a 2023 considerando o alinhamento com a ciência aberta. O objetivo é fazer com que as revistas avancem na profissionalização, internacionalização e sustentabilidade, orientadas por boas práticas de comunicação das pesquisas da ciência aberta. Isso se dará de forma progressiva e no ritmo das capacidades de cada coleção.
Como a SciELO Brasil atua como Secretaria Executiva da Rede, deve liderar, pelo menos de início, a adoção das práticas de comunicação da ciência aberta. São questões centrais para isso: estimular a transparência de todos os processos e também a colaboração entre pesquisadores e usuários das pesquisas. Quanto aos critérios que norteiam a Rede SciELO, trabalhamos com três dimensões principais: adotar preprints como etapa inicial no fluxo da comunicação científica; citar e referenciar os dados, códigos de programas e outros materiais (que, salvo exceções, deverão estar disponíveis em repositórios de acesso aberto) e abrir progressivamente a avaliação de manuscritos.
PP: Pensando em desafios atuais, como nos cortes do setor público para pesquisa, ciência, tecnologia e inovação, de que forma as práticas de ciência aberta impactam na sustentabilidade das revistas científicas? Quais são os prós e contras relacionados ao novo modelo?
Abel Packer: A ciência aberta demanda que publicadores e editores de periódicos renovem suas políticas editoriais, já que as novas práticas aceleram os processos. Isso significa difundir o conhecimento em pesquisa de uma forma mais rápida, evitando atrasos de anos na aplicação do conhecimento científico, que pode trazer soluções para diversos problemas em todas as áreas. Os pesquisadores e autores passam a ter mais controle sobre a visibilidade de sua produção e a divulgação de seus trabalhos na rede e também mais responsabilidade durante este processo.
PP: Certo. Mas, ao mesmo tempo, há quem questione a qualidade e reprodutibilidade da pesquisa. Vale lembrar que atravessamos um momento de ataques à confiança na ciência, fakenews e outros problemas. Neste cenário, qual seria o papel dos editores científicos, tradicionalmente os “guardiões” da qualidade do que é publicado pelas revistas?
Abel Packer: Justamente, o papel principal reservado aos periódicos na ciência aberta é o de validar as pesquisas. O que muda na função tradicional do periódicos é a exigência de que a comunicação da pesquisa seja inédita. Já sabemos que isso tem contribuído para atrasar a comunicação das pesquisas.
Vale observar que os servidores de preprints têm controles para assegurar que o texto é de reconhecida autoria, com ORCID e afiliação definida, o que permite verificar a produção científica anterior dos autores. Ao depositar um manuscrito de caráter científico em um preprint, a responsabilidade é dos autores, que estão muito mais expostos. Os preprints são abertos, adquirem DOI, podem ser aperfeiçoados seguidamente. Mas todas as versões ficam disponíveis e permanecem para sempre nos servidores. Com isso, os pesquisadores vão redobrar o cuidado na elaboração do manuscrito antes da submissão. Ou seja, a tendência é justamente melhorar os manuscritos. E vale lembrar: as retratações também são públicas.
PP: Ao mesmo tempo, neste cenário da ciência aberta, já se fala em diversas inovações, como publicações líquidas, datapapers, cadernos de laboratório abertos, revisão por pares aberta. De maneira geral, você acha que as publicações brasileiras e latino-americanas têm condições de se adaptar bem a esta transição? Pode-se afirmar que seria uma vantagem já ter o modelo de acesso aberto, como o da SciELO, em comparação a países que tradicionalmente investem nas grandes publicações em que todo o modelo é pago (da submissão ao acesso)?
Abel Packer: Além de contribuir para o aperfeiçoamento e visibilidade dos periódicos e das pesquisas que comunicam, a SciELO atua especificamente no desenvolvimento das infraestruturas e capacidades editoriais dos países. Entendemos que saber publicar é condição essencial da capacidade de fazer pesquisa. Há um esforço permanente para adotarmos o estado da arte em comunicação científica.
Por outro lado, a pesquisa comunicada por periódicos de qualidade indexados no SciELO complementa a pesquisa publicada em revistas do exterior, com relevância crítica para equacionar objetos de pesquisa de interesse nacional. Portanto, há uma necessidade e um dever de políticas nacionais de apoio à pesquisa e sua comunicação de alinhar os periódicos com as práticas da ciência aberta. Dessa forma, a SciELO é uma das importantes políticas públicas de apoio ao desenvolvimento das infraestruturas de pesquisa.
PP: Tratando especificamente do campo de atuação da Fiocruz, poderia nos dar um panorama dos periódicos da área de saúde abrigados na SciELO? Que relevância têm nas coleções?
A revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz participou proativamente da criação da SciELO, e hoje é dos periódicos que lideram a adoção das práticas da ciência aberta. Partindo de um periódico centenário, consolidado nacional e internacionalmente, trata-se de um posicionamento avançado e notável.
A HCSM, que está completando 25 anos discutindo ciência aberta, cresceu com a SciELO e é hoje também uma revista que qualifica nossa coleção em capacidade editorial. Além disso, tem também liderança internacional. E um aspecto, em especial, que vale destacar, é sua participação na divulgação científica por meio das redes sociais.
PP: Considerando toda a sua experiência e olhando os desafios e perspectivas atuais para fazer com que o conhecimento seja um bem público, como o senhor se sente, em particular? Está otimista?
Abel Packer: O Brasil é pioneiro no acesso aberto à pesquisa que é publicada nos periódicos do país por sociedades científicas, associações profissionais, universidades e outras instituições de pesquisa. A SciELO entende o conhecimento científico como bem público global. Essa conquista contribuiu também para a aceitação e até “popularização” do acesso aberto nas diferentes comunidades de pesquisa que publicam em revistas de referência editadas, em sua maioria, por publicadores comerciais. Ou seja, não se manifesta no Brasil uma oposição ao acesso aberto, embora a maior parte dos pesquisadores priorize a publicação em periódicos com alto Fator de Impacto.
Nesse sentido, o sistema nacional de pesquisa e as políticas públicas de apoio à pesquisa não favorecem o avanço acelerado do acesso aberto. Ao contrário. A expectativa mais otimista seria se a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)premiasse no sistema Qualis as pesquisas publicadas em acesso aberto. Por exemplo, aumentar em 25% o valor da estratificação do periódico de acesso aberto. Mais avançado ainda será premiar as pesquisas publicadas depositadas anteriormente em servidores preprints. Ou seja, artigos com DOI de preprint além do DOI do periódico receberão um bônus por contribuir para a democratização do conhecimento científico.
Após 20 anos de operação regular e constante atualização, o modelo SciELO mostra que é viável e sustentável publicar em acesso aberto. Ao estimular o alinhamento com as práticas de comunicação da ciência aberta, estamos promovendo um nova etapa da comunicação científica do Brasil e dos países da Rede SciELO.
No Brasil, há resistências e dificuldades enormes, devido à falta de recursos e à ausência de políticas proativas de adoção do acesso aberto e da ciência aberta, o que pode comprometer o futuro dos periódicos no país. Mas, temos um enorme capital, que é a experiência acumulada que os periódicos adquiriram com a SciELO no trabalho em rede, somada às perspectivas dos muitos ganhos que estão sinalizadas nestas linhas prioritárias de ação. Diria que o cenário é de um otimismo contido.
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