Levy: conferencista do Seminário Educação, Saúde e Sociedade, organizado pela Fiocruz
Filósofo da inteligência coletiva, Pierre Levy veio ao Brasil esta semana para cumprir uma agenda voltada novamente para a educação. Desta vez, ele visita a Fiocruz, onde fará a conferência Educação e comunicação, desafios para uma cultura de responsabilidade de colaboração em redes. A conferência faz parte de uma ampla e diversificada programação do Seminário Educação, Saúde e Sociedade do Futuro, que acontece de 25/8 a 27/8, no Museu da Vida. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, Levy fala sobre o papel da internet na educação, o impacto da revolução digital na comunicação e o destino da imprensa tradicional diante desse novo paradigma que emergiu com o advento da internet.
Agência Fiocruz de Notícias: Quais são os principais desafios da “cultura de colaboração de rede” em matéria de educação e comunicação?
Pierre Levy: Deve-se entender que não há "cultura da comunicação em rede" sem uma boa educação: alfabetização, conhecimento de idiomas estrangeiros, história, geografia etc. Antes de sermos capazes de pensarmos juntos, devemos compreender as referências básicas e aprender a pensar por nós mesmos. Claro, a educação na escola deve usar todas as ferramentas atuais (smartphones, tablets e computadores) conectadas à internet e praticar a aprendizagem colaborativa como nova norma no trabalho e na vida social.
No meio algorítmico, a comunicação se torna uma colaboração entre pares para criar, categorizar, criticar, organizar, ler, promover e analisar os dados por meio de ferramentas algorítmicas. Não há mais nenhuma autoridade transcendente, e, por isso, é tão importante desenvolver o pensamento crítico e a responsabilidade. Mesmo que as pessoas dialoguem e falem umas com as outras, o principal canal de comunicação é a própria memória comum - uma memória que todos transformam e exploram. Habilidades em análise de dados estão no cerne da nova alfabetização algorítmica. Veja minha página na web para ter um exemplo disso: http://pierrelevyblog.com/Curation/
AFN: Em uma das suas entrevistas, o sociólogo e filósofo francês Edgard Morin afirmou que informação não é conhecimento. Algumas pessoas afirmam que estamos na era do conhecimento. No entanto, outras argumentam que a internet não é um grande meio de acesso ao conhecimento, mas um grande meio de acesso à informação. O que o senhor acha? É possível transformar a informação em conhecimento, apesar do excesso de informação na internet?
Pierre Levy: Vamos distinguir informação – que é uma representação explícita do conhecimento – e o conhecimento em si, que é a habilidade de viver para compreender situações, identificar problemas e resolvê-los. Do conhecimento, criamos informações, e de informações, podemos aumentar nosso conhecimento: é um ciclo. Se alguém diz: “há também muitos livros na biblioteca”, achamos que o cara não entendeu o que é uma biblioteca, e para que serve. Mas quando alguém diz que há muita informação na internet, algumas pessoas têm a impressão de que ouviram uma palavra de sabedoria. Mas elas estão erradas! Nunca há “muita” informação. O que ocorre é que você não sabe como selecionar suas fontes, como criar sua própria memória pessoal nessa nuvem de informações, como organizá-la pelo sistema de categorização certo (tags, palavras-chave etc.). E, finalmente, como analisá-la para aumentar seu próprio conhecimento. Agora, é verdade que as ferramentas atuais para procurar informações e automatizar sua análise são limitadas. Mas estamos apenas no início da revolução algorítmica. Finalmente, gostaria de lembrar que a internet não é apenas um grande caótico banco de dados em frente ao qual você se sente isolado e indefeso, mas também um canal de comunicação de muitos para muitos, um meio social onde as pessoas podem ajudar umas as outras a encontrar e analisar as informações a fim de ampliar seus conhecimentos.
AFN: O senhor diz que estamos atualmente vivendo uma revolução maior do que a invenção da prensa e que houve um salto na produção e disseminação do conhecimento. Qual o impacto disso no campo da ciência e da saúde?
Pierre Levy: A invenção da escrita, há cinco mil anos, levou a um aumento do acúmulo de memória social e ao surgimento de novas formas de conhecimento. A revolução da imprensa, e depois da mídia eletrônica, contribuiu para o surgimento do mundo moderno, com seus Estados-nação, indústrias e suas ciências naturais matemáticas experimentais. Foi apenas na cultura tipográfica, no século XVI, que as ciências naturais tomaram a forma de que desfrutamos atualmente: observação ou experimentação sistemática e teorias baseadas no modelo matemático. Da decomposição da teologia e filosofia emergiram as ciências sociais e humanas. Mas nesta fase a ciência humana ainda era fragmentada por disciplinas e teorias incompatíveis. Além disso, suas teorias eram raramente matematizadas ou testáveis.
Estamos agora no início de uma quarta revolução, onde uma “infoesfera” interconectada e onipresente é repleta de símbolos – ou seja, de dados – de todos os tipos (música, voz, imagens, textos, programas etc.) que estão sendo transformados automaticamente por algoritmos. Com a democratização da análise de megadados, as próximas gerações verão o advento de uma nova revolução científica... Mas desta vez será nas ciências sociais e humanas. A nova ciência humana será baseada na riqueza de dados produzidos por comunidades humanas e um crescente poder da computação. Isto levará à inteligência coletiva reflexiva: as pessoas vão se apropriar da análise de dados, e os sujeitos e objetos de conhecimento serão as próprias comunidades humanas.
Nas ciências da saúde, pesquisadores criam grandes bancos de dados on-line comuns, eles colaboram através de seus blogs, através de plataformas de compartilhamento e através de meios de comunicação sociais especializados. As pessoas comuns têm acesso a um monte de dados on-line sobre saúde e participam de plataformas contribuindo para conversações sobre temáticas relacionadas à saúde.
No futuro, as pessoas serão capazes de navegar em mundos virtuais representando o estado e a evolução da saúde pública. Esses mundos virtuais interativos mostrarão a relação causal entre as principais variáveis relacionadas à saúde. Ajudarão os cidadãos, os especialistas, as instituições de saúde e os governos a compartilhar os mesmos "mapas", a fim de entender suas respectivas posições e interações e de escolher entre diferentes opções.
AFN: Com o advento da internet, estamos passando por um novo paradigma no campo da comunicação. Mídias sociais se tornaram cada vez mais uma fonte de informação e têm substituído os veículos de comunicação tradicionais. Isto tem trazido muitos desafios para a mídia off-line. No Brasil, por exemplo, alguns veículos de comunicação têm enfrentado graves crises financeiras e alguns logo serão extintos. O senhor acha que será o fim da mídia tradicional?
Pierre Levy: A primeira indústria claramente interrompida pela internet foi a indústria musical. O e-mail substituiu a letra do manuscrito. Agora, a "economia colaborativa" rompe a indústria hoteleira (Airbnb) e a indústria do táxi (Uber). Em última análise, muitos setores econômicos serão transformados ou eliminados pela evolução das comunicações. Vamos lembrar que, desde o século 18, tem havido muita ascensão e queda de indústrias, e que a revolução da comunicação não retardará esse ritmo, muito pelo contrário! Tenho certeza de que ainda vai haver "indústrias de notícias" no futuro, mas não haverá mais jornais. Além disso, não haverá mais rádio e televisão como conhecemos. Estes meios não-interativos serão integrados às maiores indústrias que estarão centradas na internet.
AFN: Com relação à educação, o Brasil ainda está longe do nível de outros países. Como o senhor acha que a internet pode ajudar a resolver este problema?
Pierre Levy: A internet não é uma solução mágica. Nunca substituirá o entusiasmo, o trabalho e as políticas públicas sólidas. Se o povo brasileiro colocar a educação no topo das suas prioridades políticas, o uso da internet poderá ser muito benéfico. Deveria haver Wi-fi e banda larga gratuitos nas grandes cidades e nas áreas pobres. Todas as escolas devem ter Wi-Fi e acesso aberto à internet. Professores e alunos precisam ser incentivados a partilhar experiências e recursos. O pensamento crítico e as habilidades na análise de dados deveriam ser ensinados no segundo grau. É importante evitar a criação de comunidades fechadas e redundantes (portais). As atuais mídias sociais e o software livre devem ser usados.
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