José Castilho Marques Neto

Editora Fiocruz*

O secretário executivo do PNLL comenta avanços e desafios das
editoras universitárias e seu papel na formação integral de cientistas

"Está na hora das universidades encararem a incapacidade leitora de parte dos seus alunos e estruturarem seriamente um programa de mediação de leitura adequado à sua realidade local". A afirmação é do secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), José Castilho Marques Neto. Em conversa com o editor executivo da Editora Fiocruz, João Canossa, o secretário recomenda que formação integral de cientistas seja apoiada pela "leitura literária, que pode ser um excelente texto transversal entre todas as ciências".

Além de estimular a leitura reflexiva, necessária à formação do pensamento crítico e autônomo, Castilho destaca outros desafios das editoras universitárias, como a nova textualidade eletrônica (que não necessariamente é sinônimo de uma leitura fugaz e descartável) e a clareza dos projetos editoriais (fundamental a uma estratégia adequada de distribuição dos livros). Ele também comenta as conquistas do setor, que tem participação efetiva no âmbito das atividades do PNLL. "Hoje já não é possível montar uma feira de livros sem incluir as editoras universitárias", destaca. Leia a entrevista completa, que integra e encerra uma série de conteúdos exclusivos do Portal de Periódicos Fiocruz, em comemoração ao Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor (23/4).

João Canossa: Uma grande parte das editoras universitárias enfrenta problemas relacionados à distribuição e circulação de seus livros. Como as ações de democratização do acesso previstas no PNLL podem favorecer o livro acadêmico?

José Castilho Marques Neto: Desde 1988 atuo na edição universitária, e meus colegas conhecem minha posição no sentido de enfrentarmos, em primeiro lugar, as barreiras que a própria instituição nos coloca para atuarmos de maneira consequente na distribuição dos livros produzidos. Por isso, antes de comentar a democratização do acesso à leitura, que é um objetivo fundamental do PNLL, gostaria de tratar de dois problemas fundamentais. O primeiro é que o projeto editorial de cada universidade nem sempre explicita claramente seus objetivos, o que leva a uma orientação vaga ou em ziguezague quando se distribuem os livros. Por exemplo, qual o público desejado: leitores internos (da instituição), da região, do país, do exterior? A segunda questão diz respeito à infraestrutura legal e material necessária a cada uma das decisões tomadas no projeto editorial. Distribuir somente para o público interno requer um tipo de suporte legal/fiscal e logístico; para outros países demanda infraestrutura e aparatos legais/fiscais diferentes. Resolver esses dois problemas é fundamental para que as editoras entrem no jogo da distribuição – que é acirradíssimo no Brasil, onde a maior parte dos livros é vendida por livrarias físicas e virtuais. E, cada vez mais, vemos esse negócio diminuir de tamanho e quantidade, de acordo com dados da Associação Nacional de Livrarias (ANL).

O Eixo 4 do PNLL opera no fomento à economia do livro. Essa cadeia começa com o autor e passa pelo editor, pelo livreiro, pelo distribuidor e pelas feiras e eventos do livro. Como programa indutor, temos atuado junto ao Ministério da Cultura (MinC)  e ao Ministério da Educação (MEC), para que esse incentivo ocorra em múltiplas categorias, inclusive no livro universitário. Hoje já não é possível montar uma feira de livros sem incluir as editoras universitárias, o que há 15 ou 20 anos era bastante comum. A mudança tem muito a ver com o trabalho individual das editoras e da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu), mas também com as diretrizes abrangentes e democratizantes do acesso à leitura adotadas pelo PNLL, que baliza as políticas públicas federais no setor, notadamente no âmbito do MinC. Evidentemente, as políticas gerais incentivadas pelo PNLL para a promoção da leitura e o aumento de leitores também incidem diretamente sobre o consumo e a demanda por distribuição do livro universitário.

João Canossa: Mas, muitas vezes, o acesso ao livro não é suficiente. Em especial, ao livro acadêmico, pelas especificidades do seu conteúdo científico, o que reforça a importância do papel dos mediadores. Como o PNLL encara esse desafio para o livro acadêmico?

José Castilho Marques Neto: Na condição de participantes do esforço de editar na universidade, esta é uma pergunta importante, porque nos dá a oportunidade de tratar de um problema incômodo à academia. Os dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) apontam para um Brasil que tem 75% de sua população marginalizada por algum grau de analfabetismo funcional. Em dados brutos, significa que quase 150 milhões de pessoas, embora identifiquem os caracteres escritos, não conseguem compreender corretamente a página de um texto, sua mensagem, suas nuances e interrelações com outras ideias, seus conceitos etc. O assustador para a universidade é que temos 38% de analfabetos funcionais como alunos, ainda de acordo com o Inaf. A pergunta é: o que a universidade deve fazer diante desse quadro? Mesmo antes da pesquisa, é possível observar esta situação, cotidianamente, nas salas de aula, nos diálogos com professores, nas redações e provas, nos trabalhos acadêmicos. É um problema que atinge todas as instituições acadêmicas e de pesquisa, mas é óbvio que varia conforme o grau de excelência (e exigência) de cada uma.

Como enfrentar essa questão hoje? Aumentar a qualidade dos anos de formação inicial e ensino médio, avançar na educação continuada e agir globalmente para a sociedade nos eixos explicitados no PNLL são ações que precisam ser realizadas e estão acontecendo parcialmente. Mas está na hora das universidades encararem a incapacidade leitora de parte dos seus alunos e estruturarem seriamente um programa de mediação de leitura adequado à sua realidade local. Deixar a antiga ideia de que o aluno universitário, por ter passado nos exames de admissão, está apto a ler sem problemas um texto científico ou literário. Esta já é uma meia verdade porque parte expressiva dos estudantes não apresenta essa capacidade quando ingressa no ensino superior. É mais um problema que impacta a forma tradicional de pensarmos a universidade, mas é uma questão básica e real que bate todos os dias em nossas portas e precisa fazer parte da estratégia do ensino superior no Brasil. Atenção ao lugar da leitura nos currículos, atenção e força mediadora às bibliotecas universitárias e aos seus profissionais, conscientização do corpo docente sobre a importância da formação leitora, principalmente da leitura literária, que pode ser um excelente texto transversal entre todas as ciências e contribuir para o aumento da capacidade reflexiva dos alunos, voltada para o pleno entendimento da complexidade da vida.

João Canossa: O uso de novas tecnologias de informação e comunicação impõe desafios não só ao livro, mas a todas formas de leitura e escrita mais velozes e fugazes. Como conservar o valor do livro nesse novo contexto cultural?

João Castilho Marques Neto: A leitura de um livro em qualquer suporte requer capacidade reflexiva e tempo suficiente para maturação. No livro acadêmico, isso me parece mais evidente e necessário. Muitas vezes, confundimos a consulta pontual a um capítulo, a uma tabela etc. – e a rapidez e fugacidade desse procedimento – com a leitura que se precisa ter na universidade. O leitor universitário precisa de tempo suficiente para ler um livro, para ler um autor do começo ao fim, incorporando um sólido lastro de leituras completas, inter-relacionadas, que o auxiliem na formação do pensamento crítico e autônomo que se exige de uma pessoa com formação superior. A ideia de pessoas bem formadas academicamente ainda não foi aniquilada pela sociedade contemporânea, mais afeita ao espetáculo de textos frágeis de argumento, narrativa e complexidade, que podem ser consumidos no âmbito da leitura rápida e descartável.

Mas é evidente que a universidade brasileira corre esse perigo no mundo contemporâneo, na exata proporção em que o domínio da informação e do conhecimento são peças chaves da dominação científica, econômica, tecnológica e social, hoje centralizada em poucas mãos e países – que, não por acaso, cuidam da formação integral de seus intelectuais. Cientistas integralmente formados têm outro peso em sua função social e na determinação do uso de seu conhecimento. E isso não pode ser obtido sem a leitura reflexiva. Mas atenção: não podemos confundir o debate sobre o suporte da leitura com os procedimentos culturais e intelectuais que utilizamos na condição de leitores. O tema do suporte tradicional ou da textualidade eletrônica é importante e determina formas de produção e de leitura específicas, uma questão muito bem tratada por intelectuais do porte de Roger Chartier e Robert Darton, entre outros. É importante desvincular a leitura reflexiva do senso comum sobre as novas tecnologias digitais, como se o texto em base eletrônica devesse ser lido necessariamente de maneira rápida e fugaz. Sim, o mundo virtual induz à velocidade e à fugacidade, mas a escrita é suportada por diversas formas. Desconfio que estejamos apenas no começo da textualidade eletrônica. O que a academia deve compreender é que não se formam intelectuais e cientistas se eles não desenvolverem a capacidade leitora para a reflexão e a formação do pensamento crítico. Em qualquer suporte.

João Canossa: No âmbito do PNLL, quais os programas de apoio à economia do livro acadêmico?

José Castilho Marques Neto: Por ser um Plano, o PNLL não tem a gerência ou a execução dos diversos programas e ações que apoiam o livro e a leitura nos ministérios. Sua função é indutora, tendo por base conceitos e eixos de ação amplamente debatidos e acordados com especialistas e militantes do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas. A indução do PNLL junto ao MinC e ao MEC e a vários setores do governo federal é sempre no sentido de inserir o livro acadêmico nos programas desenvolvidos naqueles ministérios, autarquias, fundações. Faz pouco tempo que o livro acadêmico passou a ter importância como um setor editorial produtivo, conquistando participação efetiva em atividades propostas e influenciadas pelo PNLL. Mas é fundamental ampliar a presença e participação da Abeu e de autoridades de universidades e institutos de pesquisa, engrossando a posição pró-edição acadêmica, para que o setor editorial universitário ganhe a dimensão que realmente merece e exerce na economia do livro no Brasil.

* Colaborou Fernanda Marques

 

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