Jairnilson Paim

Reciis (vol. 10, n.2, abr-jun/2016)* | Foto: Raquel Portugal

Paim: "É na hora de prestar o cuidado que se pode
desconstruir imagens desfavoráveis ao SUS"

 

A Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde (Reciis) lança sua seção de entrevistas. O pesquisador Jairnilsom Paim, professor-titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), abre o novo espaço, dialogando sobre questões relacionadas aos 30 anos da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde.

 

Reciis: O senhor identificou o processo da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) com o conceito de “revolução passiva” (i)(1), em que prevalece a lógica do “conservar-mudando”. Três décadas depois, o processo da RSB permanece nesses moldes? Que elementos a tornariam uma “reforma social geral” ou uma “revolução no modo de vida” como anunciou seu projeto original?

Jairnilson Paim: Creio que essa categoria de “revolução passiva” continua vigente para examinar a Reforma. Acrescentaria que a própria Reforma Sanitária Brasileira enquanto um processo que tem idas e vindas, avanços e recuos, passou a ter a sua “revolução passiva” específica. Ou seja, dentro dela mesma há momentos que são construídos por sujeitos que fazem avançá-la, mas também sujeitos que fazem com que fique estagnada ou mesmo retroceda. Então, diria que o conceito gramsciano de “revolução passiva” está vigente não só para entender a sociedade brasileira, como para explicar as próprias idas e vindas específicas do processo de Reforma Sanitária no Brasil.

No meu livro sobre a Reforma Sanitária (2) chego a chamar a atenção para o fato de poder examinar vários de seus momentos: o da ideia, o da proposta, o do movimento, do projeto e do processo. Entendendo a Reforma como processo, não necessariamente com as mesmas dimensões ou características da sua ideia original, da sua proposta ou do seu projeto. São as circunstâncias, as situações conjunturais que vão dar o elemento mais progressista ou regressivo dessa reforma. Vejo que essa reforma geral, isto é, a “revolução do modo de vida” ou a “reforma total” – que não são categorias gramscianas, são da Agnes Heller (3), quando ela estuda diferentes tipos de práxis dentro de uma sociedade – não ocorreu. Porque é aquilo que Arouca chamava a atenção: a verdadeira reforma sanitária deve incluir uma totalidade de mudanças – além da reforma sanitária, tem que haver a agrária, a universitária, a tributária, a urbana –, esse conjunto de reformas é que daria um caráter de “reforma geral” e de “revolução do modo de vida”. Portanto, a Reforma Sanitária, ao cuidar das pessoas no seu cotidiano – questões de gênero, da cultura, psicológica e várias outras dimensões que não estavam restritas à produção econômica – traria maneiras diferentes de uma outra categoria muito adotada na saúde coletiva, que são os “modos de andar a vida”, do Canguilhem (4). A “revolução do modo de vida”, segundo Agnes Heller, ocorre quando você consegue não só apenas toma o poder do Estado ou faz reformas setoriais, mas quando a vida das pessoas se modifica. Ela explica isso dizendo que não existem experiências concretas – quando ela pesquisou para ilustrar a “revolução do modo de vida” – porque geralmente as revoluções foram até a tomada do poder e a implantação de determinada forma de organização da sociedade, mas não mudaram a vida das pessoas. Ela disse que talvez as experiências da humanidade que mais se aproximariam da ideia de “revolução no modo de vida” teriam sido o Iluminismo e o Cristianismo. Porque as pessoas, de alguma maneira, modificaram o seu cotidiano a partir do Iluminismo, a partir da ideia da razão, e no Cristianismo, já que, tantos séculos depois de Cristo, as pessoas ainda falam dessas coisas, ainda vão à igreja. Enfim, essa “revolução no modo de vida” não era uma prescrição da Reforma Sanitária, mas estava nas entrelinhas ou no horizonte, porque não significava apenas reorganizar o serviço de saúde, tinha a ver com os “modos de andar a vida” das pessoas.

Reciis: Em seu editorial "O futuro do SUS" (5), o senhor fala em sustentabilidade econômica e sustentabilidade política. Sobre a primeira, diz que “se encontra ameaçada” e cita o problema do subfinanciamento do setor saúde. Quanto à segunda, pondera que “caberia analisar quais forças políticas e sociais defendem efetivamente o SUS e quais se aproveitam de suas fragilidades para ampliar a mercantilização e a privatização, diante das ambiguidades e omissões da regulação estatal”. Passados quatro anos, quais foram as mudanças significativas na conjuntura econômica e política no que diz respeito ao SUS?

Jairnilson Paim: Eu estava muito preocupado em 2012, porque era praticamente o início de um governo que teria a condição de dar passos importantes em relação ao SUS, que, no entanto, estava de alguma maneira subordinado a um debate entre financiamento e gestão. Um problema muito sério, decidir se era financiamento ou gestão, como se fossem coisas contraditórias. Isso estava muito presente tanto no discurso da presidente quanto do ministro da Saúde. Me pediram para escrever sobre o futuro do SUS e, nesse editorial (acesse aqui, no canto alto à direita) eu dizia que o futuro depende do que se faz hoje. Naquela época, o que estava se fazendo anunciava que não ia ser coisa boa, independentemente da crise econômica de 2008 e da crise política que estamos vivenciando. Por exemplo, os passos dados em determinadas relações com as grandes empresas vinculadas a planos de saúde, que se reuniam de maneira meio clandestina com o Planalto, ou com certos dirigentes de hospitais privados no Brasil, midiáticos, porque eles estão toda hora na mídia, em contato direto com a Presidência da República. Isso não sinalizava coisas boas para o SUS, ainda do ponto de vista de articulações. E quando se via as ações que estavam sendo feitas pelo Executivo em aliança com o Legislativo para impedir que o Saúde+10 avançasse, o próprio governo já estava considerando o ponto de vista do Executivo e do Legislativo, inviabilizando a sustentabilidade econômica do SUS. Por isso o editorial traz a questão desse subfinanciamento, que já era crônico, e estava sofrendo muito mais ameaças naquele momento, configurando um mau presságio para o SUS.

Por outro lado, se não conseguirmos ampliar nossas bases de sustentação política – os sindicatos, os partidos e certos movimentos em defesa do SUS – o Sistema ficará restrito a alguns intelectuais ou algumas instituições, como a Fiocruz, institutos de saúde coletiva, universidades de um modo geral, mas isso é insuficiente para poder manter um projeto da natureza do SUS. Esse é um grande desafio: ao longo desses 40 anos, desde o início do movimento sanitário, considerando o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde] como uma referência, não conseguimos ampliar as bases de sustentação política para a reforma. Tivemos ganhos? Tivemos. Mas além do Cebes tem outros sujeitos coletivos: Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde], Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], tem AbrES [Associação Brasileira de Economia da Saúde], Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] etc. Um projeto da natureza do SUS implica uma reforma democrática do Estado e mudança de valores da sociedade. Por isso, o Arouca falava de projeto civilizatório. Esses recursos que temos são muito escassos para poder lidar com tanta ousadia e generosidade do projeto de Reforma Sanitária.

Reciis: O SUS, inicialmente concebido como um sistema de saúde para todos, cada vez mais tem sido associado à parcela menos favorecida da população (“SUS para pobres”). Além disso, temos no Brasil um sistema de saúde com grande participação do setor privado (saúde suplementar). Considerando a atual conjuntura política e suas incertezas, quais são as ameaças e os desafios para a manutenção do SUS e da saúde como direito?

Jairnilson Paim: Me desculpem pelo trocadilho, mas temos muito a temer, porque o que se coloca não é nada muito favorável em relação ao desenvolvimento do SUS. Mas para além da temeridade, de novo um trocadilho, de mau gosto, nós temos a História, e acho que isso é importante a gente retomar. O SUS já teve grandes ameaças em outros momentos e nem por isso acabou, ainda que tenha sido desfigurado.

Só para lembrar um pouco, logo que a Constituição cidadã estabeleceu a proposta do SUS, o governo federal deveria encaminhar o projeto de lei, a chamada Lei Orgânica da Saúde, em 180 dias. Não o fez! Teve o ano tumultuado de 1989, que resultou na eleição do presidente Collor, e todo mundo imaginava que aquele recém-nascido SUS ia acabar, e não acabou. Ninguém imaginava que se conseguiria uma lei orgânica da saúde em 1990, e saiu. Houve vários vetos, tudo o que dizia respeito à participação da comunidade e a repasse de recurso ou financiamento o presidente vetou, e se conseguiu reconstruir uma articulação a ponto de, em 28 de dezembro de 1990, sair a Lei 8.142, que garante os conselhos, as conferências, a existência de planos de saúde, de relatório de gestão e de passagens de recursos, mesmo que os repasses ainda não tivessem sendo realizados. Quem está vivendo essa crise de hoje, tem que se lembrar do que foi aquela época, isso em 1990. O mesmo governo que fazia essas duas leis, no início de 1991, logo no dia 7 de janeiro, baixava a Norma Operacional Básica (NOB) 01/91, quase desqualificando e descontruindo tudo o que tinha sido aprovado nas leis anteriores, na 8.080/90 e na 8.142/90, trazendo para o sistema de saúde toda a lógica do setor privado que é do pagamento por procedimento etc. Ainda assim, o SUS andou. Em 1993, saiu um documento do governo federal, a chamada NOB 93, talvez vocês se recordem que o título do documento era “a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. Vejam, que país especial é o nosso... Sai um documento oficial do Ministério da Saúde com este título! Se fosse traduzido para outro país, ninguém entenderia como é que para cumprir a lei tem que ter ousadia. E esse foi um documento de referência, o SUS teve avanços a partir da referência da NOB 93. Era um período em que se debatia se a Constituição poderia ser reiterada em determinados aspectos ou não. E alguém já queria tirar da saúde, direito de todos, dever do Estado na Constituição, dizendo nos termos da lei, ou seja, desconstitucionalizando a ideia de saúde como um direito. E nós conseguimos vencer.

Temos derrotas, mas quem estudar a história do SUS vê: vencemos várias crises e, ainda que o Sistema não seja aquele que foi projetado, está aí. Cobrir 200 milhões de habitantes, mesmo descontando os que usam menos o SUS - que sejam 150 milhões - não é pouca coisa. Essas são as ponderações que faço. Estamos vivendo um momento difícil, todos temos preocupações, até muito graves. Mas não é questão de esperança. Admito que a gente tem que ter o pessimismo da razão, mas tem que ir examinando a História e a práxis e ver que as coisas podem avançar. Vou concluir dizendo que, até em partidos que hoje têm sido, por causa do impeachment, considerados de direita, há gente que defende o SUS. Quer dizer, não vai ser a proposta que os chamados “históricos do SUS” defendem. Como também o PT não defendeu, não é?! Também o PC do B não o fez; e tiveram chance de fazer.

Reciis: Em artigo publicado em 2000, o professor Valdir de Castro Oliveira (6) apontou a mídia, já naquele momento, como principal responsável pela conformação de um consenso negativo sobre o SUS. Considerando a crescente influência na vida política brasileira, como o senhor avalia hoje o papel da mídia na construção dos valores e sentidos que permeiam as narrativas sobre o SUS?

Jairnilson Paim: Não conheço e não estudo a mídia como vocês. Minha resposta vai ter um pouco de senso comum e um pouco de reflexão sobre a minha experiência de vida, daí relativizem. Tenho uma ideia de que a mídia está muito ligada ao projeto mercantilista, disso não tenho dúvida. Boa parte da mídia não tem nada a ver com o projeto democrático que está na Constituição, nem com o projeto que chamamos de racionalizador. Mas o que sinto com mais força é a nossa dificuldade de fazer com que, na chamada ponta do SUS, as pessoas sejam bem acolhidas, respeitadas, e que seus problemas e necessidades sejam atendidos. Por mais que tenhamos uma mídia parceira, se não conseguirmos fazer com que as pessoas sejam atendidas com qualidade, respeito, dignidade, de nada adiantará avançar e sofisticar determinadas maneiras de passar mensagens. Vai soar como propaganda enganosa, desculpe um pouco a expressão. Nosso grande desafio é fazer com que a Reforma Sanitária Brasileira chegue na ponta do Sistema, e esses valores que nós estamos discutindo aqui possam ser expressos na redefinição dos processos de trabalho. É na hora de prestar o cuidado que podemos desconstruir determinadas imagens desfavoráveis ao SUS, mostrando que o Sistema pode funcionar.

Um exemplo que vale ser mencionado é de uma jornalista que me entrevistou recentemente. Depois de fazer perguntas bem insinuantes de que o SUS não funcionava, com depoimento pessoal espontâneo próprio ela mostrou que a mãe era muito bem atendida pelo Sistema, num município em que praticamente 100% da população daquela capital brasileira tem atenção básica garantida. Então, é importante considerar a mídia, acioná-la. Não é a comunicação, o agir comunicativo e todas essas invenções, mas sim o melhor aprendizado sobre o SUS, especialmente na ponta, porque o avanço da gestão, da descentralização, da participação social, tudo isso tem muita relevância para os que pensam saúde coletiva, os que estudam, os que pesquisam, mas é abstração para as pessoas. Financiamento, gestão, organização, infraestrutura são abstrações para quem vai buscar o cuidado. Quem busca o cuidado quer atenção, e se nós não conseguirmos viabilizar isso, até por causa das questões administrativas, organizativas, financeiras, de infraestrutura, não tem comunicação que dê conta, não tem milagre. Se a pessoa encontrar uma coisa diferente do que a mídia fala, começaria a duvidar, certo?

Reciis: Em seu artigo A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS) (7) , o senhor salienta que “Uma atenção especial para a pluralidade de vozes numa sociedade democrática permitiria constituir sujeitos políticos individuais e coletivos que questionem a subversão dos direitos sociais, as iniquidades em saúde e as relações de subordinações”. De que forma a Lei de Acesso à Informação, como direito fundamental, pode influenciar/direcionar (ou não) a participação popular nas ações do SUS?

Jairnilson Paim: Reconheço que a Lei de Acesso é uma lei fundamental. Mas, é preciso ter a disponibilidade do duplo acesso, e também uma maneira de dialogar com as pessoas do ponto de vista da organização. Acompanhei com muito interesse os movimentos de junho de 2013, e senti muito quando esses movimentos, aparentemente espontâneos, não se estruturaram em organizações. Não precisam ser, necessariamente, organizações partidárias - o Cebes pode ser um bom exemplo. A tendência é de que esse acesso à informação ou acesso ao conhecimento pare aí. A ideia de estar progressivamente preocupado em constituir novos sujeitos vai no sentido contrário ao daquela justificativa que muitas vezes nós nos fazemos de que as condições não estão dadas.

Há um grande pensador latino-americano, professor Mario Testa (8), que diz que, desde pequenininho, nos domingos as famílias se reuniam, e seus tios, jogando, examinavam o contexto, a conjuntura, e chegavam à conclusão de que era preciso avançar, mas as condições não estavam dadas. E ele se pergunta o que fazer para que, em vez de esperar que as condições sejam dadas, sejam construídas. Toda a aposta na vida acadêmica dele - melhor dizendo, na sua vida política, e sobretudo nos seus textos mais recentes, para não dizer os últimos textos porque ele continua pensando -, é o que fazer para constituir novos sujeitos. Ele diz o seguinte: para examinar a constituição do sujeito, é preciso considerar uma dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva. A primeira vai depender muito da vida de cada um, da nossa história pregressa. Você nasceu muito tempo depois de mim, talvez tenha a idade da minha filha, foi uma época em que trabalhar no coletivo, no serviço público era demonstração de incompetência, porque as pessoas que eram competentes venciam a vida no privado. Isso então estimulava o individualismo, não é? Pode ser que vocês tivessem uma experiência pessoal que os levasse para outro lado. Eu sou da geração de 1968. Todo mundo mudou um pouco em determinados aspectos a partir de 68, então a minha história de vida pode ser diferente das suas histórias. Com isso, nós podemos ser críticos ou não.

Por exemplo: se eu passei por uma experiência que me ponha crítico eu vou ser crítico, subjetivamente. Se minha filha/meu filho, não passou, não terá essa tendência, subjetivamente, a ser crítico. Mas essas pessoas estão em organizações, que podem, objetivamente, por iniciativa política-institucional, desenvolver ou não uma aptidão crítica neles. Isto é: os indivíduos podem vir com uma atitude crítica ou não, mas vão encontrar uma organização que pode desenvolver uma aptidão crítica. Já se uma pessoa não teve nenhuma experiência que o fizesse crítico e passa por uma organização que também não desenvolve uma aptidão crítica, será um sujeito passivo. Por outro lado, se teve uma experiência de vida que o fazia ter uma atitude crítica perante a vida e entra numa organização que não desenvolve esta aptidão, será uma pessoa que retoma suas críticas o tempo todo na instituição, fazendo uma oposição estéril, porque não vai conseguir construir, porque tinha todo o potencial de desenvolver algo construtivo, mas a instituição não ajudou. E, se você não tem atitude crítica, mas entra numa instituição que a desenvolve, será um funcionário diferente, mesmo sem ter tido a experiência. Para fechar as casinhas imaginárias do professor Mario Testa, se você tem uma atitude crítica e chega numa instituição que a desenvolve ainda mais, você é potencialmente um sujeito transformador. Estou falando individualmente, mas acho que também as organizações, enquanto sujeitos coletivos, podem se constituir de algo que é potencial e, passando por vários processos, se torna real. Tem uns esquemas muito interessantes que podemos ver... Não é questão de otimismo ou pessimismo: existem condições objetivas que impedem determinados avanços, mas isso não deve ser pretexto nem desculpa para não constituir novos sujeitos que, daqui a dois, cinco ou dez anos, darão passos que nós não conseguimos dar em 2016.

Reciis: Em algumas de suas intervenções, a comunicação surge não como ferramenta ou instrumento para o planejamento e a gestão em saúde, mas sobretudo como uma forma de reflexão sobre a linguagem e a cultura. Num contexto marcado por novas tecnologias de comunicação, emergem novas formas de participação e mobilização em saúde. A discussão sobre o aborto, diante da epidemia de zika, ocupou grande espaço nas redes sociais, acionando novas formas de ativismo. Por quais transformações passa a política – e, particularmente, as políticas de saúde – num cenário marcado concomitantemente por novas formas de ativismo e o recrudescimento de um conservadorismo autoritário?

Jairnilson Paim: Noto que essas diferentes formas de ativismo expressam e revelam a complexidade da nossa sociedade contemporânea. Os conflitos maiores não se esgotam na relação capital-trabalho. Vão sendo desenvolvidas outras tantas manifestações em que o antagonismo se expressa. Um dos pontos que, de alguma forma, a gente precisa explorar um pouco é – vou me socorrer com um autor latino-americano e também e com uma autora do Norte – buscar certas equivalências dessas grandes relações sociais em que o conflito se estabelece e o protagonismo se coloca. Em outras palavras, como buscar uma forma em que esses diferentes jeitos de realização, esses projetos distintos de sociedade comecem a dialogar?

Eu estava dando um exemplo com o movimento de 2013... Não adianta você dizer para as feministas que a reforma sanitária é mais importante do que o movimento delas; ou dizer para o movimento negro ou para os indigenistas que a reforma sanitária abrange tudo. É preciso buscar quais são os pontos em que o antagonismo se expressa nas relações sociais entre esses diferentes espaços, e como se pode construir uma cadeia de equivalências que faz com que a democracia se expresse no cotidiano para a construção dessa vontade coletiva. Isso é o que o argentino Ernesto Laclau e a Chantal Mouffe (9) chamam de radicalização da democracia, uma estratégia em que as diferenças possam ser reconhecidas. Trata-se de buscar uma equivalência dessas experiências, não no sentido de dominação de algo que os marxistas tanto valorizaram que era a luta entre capital e trabalho, mas ter uma abertura para entender todos esses processos que a própria complexidade da sociedade está construindo e buscar formas de ligação desses movimentos num projeto mais amplo de mudança da sociedade. Suponho que esse é um ponto em que, através dos instrumentos de comunicação, todos esses movimentos que estão aparecendo hoje permitem você ter cadeias de equivalências para uma luta social mais ampla. Agora mesmo com o vírus Zika, já que vocês trouxeram o exemplo do aborto, você vai ver várias manifestações que, geralmente, eram pontuais. As feministas estão discutindo o aborto, mas com o cuidado para que isso não justifique a eugenia, não é? Você vê os epidemiologistas trabalhando com a ideia de que é preciso combater o mosquito, mas não se pode contaminar o ambiente. Os outros – pediatras, neonatologistas e ginecologistas – preocupados com a assistência pré-natal, com o parto mesmo, o que se deverá fazer para estimular precocemente as crianças, mas sempre com ações ou com pensamentos, ou com textos, discursos muito pontuais.

Isso nos incomodou tanto que, no âmbito do observatório que eu coordeno de análise de política de saúde (ii), nós estimulamos alguns professores pesquisadores dessa temática a escreverem um documento, como um position paper, um documento de posicionamento, tentando articular esse conjunto de questões. Chamamos as pessoas que pesquisavam o mosquito, as que estudavam a neurologia pediátrica e a psiquiatria infantil, as que trabalhavam com a questão da saúde da mulher, e fizemos um documento relativamente ousado para os padrões, defendendo a questão do aborto, defendendo claramente que as mulheres precisavam ter informações para decidir se querem ou não manter a gravidez naquele período, enquanto a ciência ainda produz conhecimento. Essa é uma pequena ilustração de como buscar os equivalentes em uma ação coletiva mais humanitária, respeitando a diversidade de cada um dos movimentos. Esse documento (10) está no observatório, vocês podem visitar o site.

Reciis: Até que ponto os princípios do SUS (iii), como universalidade, integralidade, participação, regionalização e descentralização, por exemplo, propostos pela Reforma Sanitária, conseguiram ser efetivamente cumpridos e quais são ainda pontos críticos do Sistema?

Jairnilson Paim: Conseguimos avançar na descentralização, na participação da comunidade (a segunda diretriz), avançamos muito na integralidade, pelo menos, na Atenção Básica - dou como exemplo o Saúde da Família. Se for pensar, por exemplo, em Vigilância em Saúde, o que se conseguiu avançar em saúde do trabalhador, em vigilância ambiental, vigilância epidemiológica, vigilância sanitária – que era um caso de polícia, e hoje se respeita a experiência da Anvisa –, avançamos muito. Lembro duas questões: a qualidade do cuidado, a segurança do paciente – uma das áreas de importância em que a Cláudia Travassos (iv) tem investido muito –, e a integralidade do cuidado nos vários níveis. Acho que são pontos que vão ressoar na regionalização.

A regionalização é um dos grandes nós. Os grupos que estão estudando a regionalização têm, muitas vezes, o discurso da solidariedade, mas não existe solidariedade entre instâncias de governo, entre instâncias estatais, o que temos é uma luta política. Enquanto o componente da análise política, da análise estratégica não estiver presente nos que estão coordenando ou articulando os esforços da regionalização, não encontraremos saída. Porque não é um desenho de redes que vai dar conta. Quais são os fatos que podem ser construídos com a situação que temos hoje? Suspeito que algumas teses de doutorado que têm estudado a regionalização, eu conheço uma do Ceará e outra do Mato Grosso (um dos lugares que quase se antecipou nesta questão), possam contribuir para esclarecer os obstáculos para a regionalização.

Não fomos treinados para contratualização, nós fomos qualificados para trabalhar com determinados valores do interesse público e não sabemos como negociar com quem está olhando somente para o lucro. Na medida em que toda a parte da atenção especializada passa a depender de compras do setor privado, o sistema público se torna refém, o discurso da racionalidade ou o discurso do bem comum não sensibiliza quem está do outro lado. Ou você trabalha com determinados cálculos que os empresários fazem, ou dança. Inclusive tem todo um conhecimento do qual talvez os economistas ou os administradores disponham, que é de como tratar com o outro lado do balcão. Nós, da chamada saúde pública ou dos serviços públicos de saúde, não fomos qualificados para isso. Imagino que um grande desafio para a regionalização, para a construção de pactos e para a negociação dos vários níveis de atenção, é ter uma lógica de negociação que está muito mais do lado de quem negocia economicamente do que de quem negocia em termos de perfis epidemiológicos, de protocolos ou de padrões de qualidade. Isso não ensinamos na pós-graduação: como lidar com empresários? Muitos de nós, que passamos a ser gestores, intuímos que devemos ficar com um olho no padre, outro na missa, sabendo que aquele sujeito pode estar querendo te corromper, ou não, mas isso é uma coisa muito intuitiva. Tem um livro chamado "O que Harvard não ensina" (11). Eu suspeito que tem uma coisa que talvez a Fiocruz e a UFBA não ensinem: como lidar com empresários que vão lá para te corromper? De que forma você busca e administra a compra de serviços de saúde? Porque você é refém dele... Mantém o interesse público como dominante ou, pelo menos, o primado do interesse público? Esses são pontos da regionalização que muitas vezes não têm sido problematizados, como se a regionalização fosse apenas a gente ter uma região com os "deseinhos", e fulano vai pra aqui, pra acolá, e cria um comitê qualquer, que não tem poder e não pode pactuar. Há coisas que são da política, do pensamento do agir estratégico, que me parecem fundamentais para nortear esse grande desafio que é a regionalização.

Reciis: Como a comunidade científica deve lidar com o impacto das novas tecnologias, no que se refere ao relacionamento com o cidadão, como o "Dr. Google"? De que forma administrar o espraiamento ‘a jato’ de boatos? No caso da fosfoetanolamina, como lidar com um possível bypass, já ocorrido, e que lições esse episódio nos reserva, uma vez que quando a comunidade científica se manifesta ‘em peso’, não é ouvida? O que devemos questionar e aprender com esse episódio?

Jairnilson Paim: O "Dr. Google" é muito problemático. Tem muitos efeitos colaterais, como diríamos em medicina. Mas tem um aspecto positivo que eu quero destacar: o "Dr. Google" problematiza a soberba dos médicos, questiona a arrogância de muitos de nós, profissionais de saúde. Quando a pessoa chega numa consulta ou numa reunião, e viu antes o Dr. Google, e por isso tem informações, chega com o poder que chamaríamos de poder técnico, poder de informação, que dá para dialogar com o poder de um profissional de saúde. Com as ressalvas que fiz, vejo a importância do "Dr. Google" quanto ao acesso às informações. Não sei como se poderia administrá-lo melhor para evitar a proliferação de boatos etc. Mas quando se começa a divulgar informações de fontes mais confiáveis, como o PenseSUS, o Canal Saúde ou o Observatório, as pessoas passam a ser mais seletivas e a dar credibilidade a essa ou àquela fonte. Essa experiência é recente no Brasil.

Em relação ao caso da fosfoetanolamina, eu estava lendo uma entrevista do Jarbas Barbosa (v), e ele dizia que o problema maior não é a desmoralização da Anvisa. A Anvisa de alguma forma - ele não diz isso, mas eu quero dizer - é uma instituição respeitada no Brasil, até pela mídia. O maior problema dessa ação é que fragiliza o Brasil enquanto nação perante o mundo. É uma medida calamitosa, e terá repercussão. Não adianta imaginar que nós, pesquisadores ou professores, tenhamos tanto poder quanto tinha o Congresso Nacional, e como teria a presidente da República para fazer um veto. Ela examinou, estava vivendo uma conjuntura especial. Podia dar o veto e este ser derrubado depois. Nesse caso foi traumático, foi uma excrescência do Congresso Nacional... Resultante da iniciativa de um líder, lamentavelmente de um partido que se chama Partido da Mulher Brasileira, que é um homem, que parece ser o único deputado desse partido; E acaba entrando numa espiral que a Câmara aceita, o Senado praticamente apoia integralmente, e à presidente da República só restou o veto. Isso é um escândalo! Este caso deixará marcas na sociedade brasileira, levando-a a ter mais cuidado. A própria repercussão internacional desse fato fará com que muitas dessas medidas futuras sejam pensadas duas vezes antes de serem adotadas. Foi um péssimo exemplo que o Brasil deu quando, justamente, estava criando um saber e uma instituição forte para regular a pesquisa médica e a utilização dos produtos dessas pesquisas na rede de serviços de saúde. Lamentável! Mas os pontos negativos também depois podem virar contribuições positivas. Eu diria, como Mario Testa, que é o uso positivo das contradições e conflitos.

* Entrevistadores: 
Ana Luiza Braz Pavão, André Bezerra, Christovam Barcellos, Frederico Tomás Azevedo, Igor Pinto Sacramento, Lidiane dos Santos Carvalho, Rosany Bochner, Rodrigo Murtinho

 

Notas

(i) Conceito desenvolvido por Gramsci em sua obra Il Resorgimento, a partir do que o filósofo Vicenzo Cuoco havia cunhado no início do século XIX. No Brasil, foi publicada com o título Risorgimento italiano (caderno 19)1.

(ii) Trata-se do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/.

(iii) Mais sobre o Sistema Único de Saúde, ver ‘O que é o SUS’, de Jairnilson Paim, e-book interativo da Editora Fiocruz.

(iv) Atualmente pesquisadora da Fiocruz e consultora do Proqualis (Qualidade no cuidado e segurança do paciente), Travassos trabalha com pesquisas voltadas para a saúde coletiva.

(v) Entrevista concedida à Folha de S.Paulo, publicada em 1º de maio de 2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2016/05/1766592-caso-como-o-da-pilula-do-cancer-prejudica-o-pais-diz-diretor-da-anvisa.shtml
 

Referências

1. Gramsci A. Cadernos do cárcere. Vol 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2002

2. Paim, JS. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: Edufba; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.

3. Heller, A. Teoría de las necesidades en Marx. Trad. J. F. Yvars. Barcelona: Ediciones Península; 1986.

4. Canguilhem, G. O normal e o patológico. 6a ed. São Paulo: Forense Universitária; 2009

5. Paim, JS. O futuro do SUS. Cad. Saúde Pública [Internet]. 2012 Abr; 28(4):612-612. [citado 2016 Jun 05]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 311X2012000400001&lng=pt

6. Oliveira VC. A comunicação midiática e o Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2000 Ago [citado 2016 Jun 06] ; 4(7):71-80. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1414-32832000000200006&lng=pt

7. Paim, JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad. Saúde Pública [Internet]. 2013 Out [citado 2016 Jun 05] ; 29(10):1927-1936. Disponível em: http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2013001000003&lng=pt

8. Testa M, Paim JS. Memoria e Historia: diálogo entre Mario Testa y Jairnilson Silva Paim. Salud Colectiva. 2010;6(2):211-227.

9. Laclau E, Mouffe C. Hegemony and Socialist Estrategy: Towards a radical democratic politics. Londres, Verso; 1985.

10. Santos DN, Aquino EML, Menezes GMS, Paim JS, Silva LMV, Souza LEPF et al. Documento de posição sobre a tríplice epidemia de Zika-Dengue-Chikungunya [Internet]. 2016. [citado 05 maio 2016] Disponível em: http://analisepoliticaemsaude.org/up/oaps/noticias/pdf/1460471915570d086b9f2be.pdf

11. McComarck, MH. O que não se ensina em Harvard Business School. Rio de Janeiro: Best Seller; 1985.

12. Freire, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra; 1974.

 

Este portal é regido pela Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, que busca garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto ao conteúdo integral de toda obra intelectual produzida pela Fiocruz.