Ilana Löwy

Blog de HCS-Manguinhos (jan/2016) | Foto da home: Unsplash/Camila Cordeiro

A professora Ilana Löwy

Em 2015, mais de 3 mil casos suspeitos de microcefalia em recém-nascidos foram notificados em 21 estados brasileiros, contra 147 casos diagnosticados em 2014, de acordo com o Ministério da Saúde. Cientistas brasileiros demonstraram a ligação entre os casos e a infecção das mães, durante a gravidez, pelo vírus zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti — o mesmo que transmite dengue e chikungunya. Diante desta emergência sanitária, as mulheres estão sendo aconselhadas a adiar o projeto de ter filhos.

Nesta entrevista ao blog de HCS-Manguinhos, a professora Ilana Löwy, do Instituto Nacional de Saúde e de Pesquisa Médica de Paris, traça um paralelo entre a atual epidemia de zika no Brasil e os surtos de rubéola em épocas passadas, que motivaram a realização de inúmeros abortos ilegais e estimularam a descriminalização da prática na Europa. No Brasil, a possibilidade de as mulheres grávidas infectadas por zika terem a opção de aborto seletivo ainda não está em discussão. O aborto só é legal no país em casos de estupro, anencefalia ou risco de vida da mãe.

Blog de HCS-Manguinhos: Quais são os paralelos entre epidemias zika e surtos de rubéola de 1940, 50 e 60?

Ilana Löwy: A infecção por rubéola lembra, em muitos aspectos, a infecção por zika. A rubéola é também uma doença leve, manifestando-se como febre e erupção cutânea, geralmente sem qualquer perigo para a pessoa doente, mas muito perigosa para o feto. Mulheres infectadas com o vírus da rubéola no primeiro trimestre da gravidez correm um alto risco de dar à luz uma criança com deficiências fetais graves. O vírus da rubéola ataca o sistema neural central do feto e pode induzir a cegueira, a surdez, a combinação de ambos, problemas neurológicos e microcefalia. É impossível prever a extensão de tais malformações: algumas crianças nascem saudáveis, algumas têm deficiência sensorial e outras têm problemas neurológicos e cognitivos graves.

Blog de HCS-Manguinhos: Qual foi a reação dos médicos europeus a estes surtos de rubéola?

Ilana Löwy: Muitas mulheres que contraíram rubéola e estavam cientes das ligações entre a doença e o risco elevado de malformações fetais desejavam interromper a gravidez. Na década de 1940, 50 e 60, o aborto foi criminalizado na Europa Ocidental. Médicos que realizavam abortos arriscavam-se a ser presos e perder suas licenças médicas. Os médicos divergiam sobre o possível comprometimento fetal e o aborto. No entanto, as mulheres britânicas e francesas que foram infectadas com rubéola durante a gravidez e queriam abortar quase sempre conseguiam encontrar um médico disposto a enfrentar as interdições legais e realizar o ato, fosse em um consultório particular ou, na grande maioria dos casos, em um hospital público. Um artigo publicado no British Medical Journal em 1959, portanto dez anos antes da legalização do aborto no Reino Unido, mostra que o aborto se tornara um tratamento de rotina para mulheres infectadas com rubéola no início da gravidez.

Blog de HCS-Manguinhos: Qual a relação entre as epidemias de rubéola e a descriminalização do aborto?

Ilana Löwy: As epidemias de rubéola e a ampla aceitação do aborto para as mulheres estressadas e temerosas que haviam contraído a doença no início da gravidez ajudaram a “normalizar” o aborto e a trazê-lo para a medicina convencional. Antes, o aborto era visto como prática “desviante”, utilizada por mulheres “perdidas”, promíscuas, envolvidas em relações extraconjugais, marginalizadas ou negras. Este ponto de vista era inteiramente falso. Antes, como hoje, o aborto era frequente inclusive entre mulheres de classe média e mulheres casadas, já com filhos. Mas como era uma atividade ilegal, sua alta frequência entre mulheres “respeitáveis” permaneceu invisível.

A epidemia de rubéola levou os médicos a realizarem abortos em mulheres de seu meio e classe social. As mulheres tratadas por eles poderiam ter sido suas esposas, irmãs, filhas, e às vezes eram. Os médicos também perceberam que as mulheres pobres sofreram de forma desproporcional as consequências dos abortos ilegais. A interrupção da gravidez em casos de infecção por rubéola ajudou a inserir o aborto na medicina convencional, mudou a imagem deste ato médico e facilitou a sua legalização na Europa Ocidental e na América do Norte.

Leia outros artigos de Ilana Löwy em HCS-Manguinhos

Cancer, women, and public health: the history of screening for cervical cancer. July/2010, vol. 17, suppl. 1

Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil. Fev/1999, vol. 5, n. 3

Les métaphores de l’immunologie: guerre et paix. June/1996, vol. 3

Ludwik Fleck e a presente história das ciências. Out/1994, vol. 1, n.1

Leia também

Silva, Marinete dos Santos. Reprodução, sexualidade e poder: as lutas e disputas em torno do aborto e da contracepção no Rio de Janeiro, 1890-1930. Dez/2012, vol. 19, n. 4

 

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