Gênero e política: igualdade de gênero e diversidade sexual na crise da democracia

Reciis

“A questão que atravessa tudo que faço são as disputas em torno do próprio sentido da democracia”. Assim, a pesquisadora Flávia Biroli compreende sua trajetória na ciência. Em entrevista à Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde (Reciis), comenta sobre suas pesquisas que perpassaram a interface comunicação e política e seus estudos mais recentes sobre gênero e democracia.

Biroli discute o que denomina de neoconservadorismo, que se dá por alianças de diferentes atores conservadores de escala transnacional as quais atuam contra as agendas de igualdade de gênero e diversidade sexual. Tais ações se utilizam da dimensão moral e de valores tradicionais ‘de família’ como justificativas para a promoção de processos de erosão da democracia. Em relação aos feminismos, entende que, tanto na expressão acadêmica quanto na expressão política, o diagnóstico interseccional das opressões de gênero é central para a compreensão e para solidariedades sociais e resistências políticas.

Em contexto de pandemia, Biroli discorre sobre seus efeitos nas mulheres, mais responsabilizadas pelas práticas do cuidado. Para a pesquisadora, pensar nos modos de organização social que levam em conta relações de dependência e vulnerabilidade é também pensar na constituição de uma sociedade mais justa e sustentável. Flávia Biroli é professora associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). Confira, na íntegra, um trecho da entrevista:

 

Reciis: Poderia nos contar sobre a sua trajetória na pesquisa, a passagem pelo jornalismo, sobre a pós-graduação em história e a atuação na ciência política, e de que forma o feminismo se coloca como um ponto de reflexão em suas produções intelectuais?

Flávia Biroli: Eu tenho uma trajetória muito característica daquilo que se define como feminismo acadêmico, na minha produção sobre gênero e política no Brasil, sobre teoria feminista. Eu tenho uma trajetória de formação que é pouco ortodoxa, digamos. Cada vez mais nas ciências sociais, na ciência política no Brasil, a trajetória disciplinar na área específica tem predominado. Não foi sempre assim, mas com o advento das pós-graduações disciplinares isso se tornou mais comum nas gerações atuais que fazem pós-graduação. No meu caso, venho de uma graduação em jornalismo, na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Fiz mestrado e doutorado em história política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Nesse período foi que me aproximei da ciência política. Já doutora, quando comecei a lecionar na Universidade de Brasília (UnB), onde trabalho até hoje, passei a atuar na ciência política da UnB, e toda a minha pesquisa e atuação profissional passou a se situar nesse campo, a ponto de eu ter sido, recentemente, presidenta da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) – 2018-2020. (...)

Reciis: Em seus livros e em títulos organizados por você, gênero, desigualdades neoconservadorismo e democracia são temas muito explorados. Como eles se entrecruzam na vida social e política?

Flávia Biroli: Em Gênero e desigualdades (BIROLI, 2018) faço uma conexão entre dois eixos das análises sobre desigualdades de gênero e democracia que nem sempre aparecem juntos nos trabalhos de pesquisa. O primeiro eixo diz respeito à divisão sexual do trabalho e do cuidado, que traz como questão central o problema da responsabilização desigual de mulheres e homens, sobretudo das mulheres negras em relação aos homens e às mulheres brancas. Diz respeito à reprodução social, que é constituída por uma dinâmica cotidiana que permite a manutenção da vida. Isso não apenas no sentido físico, mas também no sentido do suporte necessário, inclusive de caráter emocional, para que pessoas sigam vivendo, trabalhando etc. Essa agenda, na minha opinião, se torna ainda mais relevante agora na pandemia de Covid-19. No livro, tal agenda aparece nos seus entrecruzamentos com as disputas no campo político institucional. Por um lado, tem-se a participação das mulheres na política, porque conecto a divisão do trabalho no cotidiano à divisão sexual do trabalho político, que atribui às mulheres papéis distintos daqueles desempenhados pelos homens. As separações e hierarquizações que assim se definem limitam a participação feminina, atribuindo a elas competências específicas e que teriam relação com disposições supostamente naturais – na verdade, derivadas dos papéis e das responsabilidades historicamente atribuídos às mulheres e aos homens. (...)

Reciis: Como você analisa a expressão ‘ideologia de gênero’? E quando ela emerge como uma estratégia política?

Flávia Biroli: Foi no processo de pesquisa e nas redes que me voltei para o tema. Entendemos que se trata de um fenômeno transnacional. Nessa pesquisa com o Juan e a Maria das Dores, e nos beneficiando de pesquisas já realizadas, trabalhamos com a ideia já bem documentada de que essa origem está nos anos 1990, na reação à presença da agenda de igualdade de gênero e de diversidade sexual, no debate sobre direitos humanos, sobretudo no ciclo de conferências sociais da ONU, com destaque para a IV Conferência Mundial sobre a mulher: igualdade, desenvolvimento e paz, realizada em Pequim, 1995.1 Nessa época já se formulava uma reação a essa agenda de igualdade e diversidade que se utilizou desse conceito ‘ideologia de gênero’. Tal reação foi capitaneada pela Igreja Católica como instituição (pelo Vaticano). O termo apareceu pela primeira vez na América Latina em um documento da Conferência Episcopal Peruana, Ideologia de gênero: seus perigos e alcances (2008). Tem relação com mudanças políticas e teológicas na maneira de abordar a questão de gênero e os avanços feministas no âmbito da Igreja Católica. (...)

Reciis: Pensando gênero de uma maneira geral, incluindo os movimentos feministas, você acha que a interseccionalidade tem sido vista como pauta política no âmbito das identidades? Na sua opinião, é preciso que haja uma identidade como projeto de luta política?

Flávia Biroli: Entendo que a construção dessa solidariedade – e esse diagnóstico do modo interseccional de produção das hierarquias, das vulnerabilidades, mas também das resistências – vai muito além de uma política de identidades. Não se trata de algo que se restrinja à afirmação de identidades ou a uma conexão restrita entre luta política e uma ou outra identidade. Inclusive, eu tenho um entendimento que adoraria discutir mais, porque sei que não é consensual, de que a própria definição, inclusive no campo progressista, de que questões de gênero e de raça são questões identitárias é uma maneira de esvaziar essas agendas e essas lutas. Lutas que vão muito além da afirmação identitária, quando olhamos as lutas das mulheres negras e feministas.

Dá para dizer que toda construção que houve para se chegar à Lei Maria da Penha é uma forma de construção identitária? Podemos dizer que toda a construção que houve – em que foi central a atuação dos sindicatos de trabalhadoras domésticas e da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) para que passássemos a ter a PEC das Empregadas Domésticas (BRASIL, 2013)4 , que igualou os direitos das empregadas domésticas ao dos demais trabalhadores em 2013 – é uma luta identitária? Existe, sim, uma demanda forte por parte de diferentes grupos para que se reconheça que suas vozes são parte do debate público e que seus corpos são parte da construção de alternativas políticas, de alternativas para a sociedade em que vivemos. São atores que buscam, justamente, fazer parte de processos de tomada de decisão, que buscam romper com silenciamentos e violências históricas, que mantiveram esses atores e essas atrizes numa situação de vulnerabilidade e precariedade e ainda por cima por fora do debate e das decisões que atingem suas próprias vidas.

Eu deixaria uma sugestão para a ala progressista, para as esquerdas: que deem um passo ao lado, quando decidirem partir desse entendimento de que se trata de política identitária. Vamos ouvir o que é demandado por esses grupos. Vamos ouvir os termos deles, o que são as agendas políticas feministas, antirracistas, antiLGBTfobia e antitransfobia, e o quanto elas são agendas transformadoras para muito além da demanda por reconhecimento das atrizes e dos atores no processo político e nos debates. 

Acesse aqui a entrevista completa.

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