Ensaios clínicos, eis a questão: dados abertos ou não?

01/04/2016
Juliana Reis e Fernanda Marques*

Do registro à publicação em periódicos científicos: 
acesse o infográfico e confira o passo-a-passo

Um editorial publicado ao mesmo tempo em 14 periódicos. O objetivo? Dar visibilidade à proposta de compartilhamento de dados de ensaios clínicos - preservando o anonimato, a privacidade e a segurança dos pacientes e voluntários envolvidos nos estudos). O assunto é alvo de uma consulta pública promovida pelo International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), que estará aberta até 18/4/2016. Como as recomendações editoriais do ICMJE são adotadas por muitos periódicos científicos brasileiros do campo da saúde, em breve, o impacto da proposta será evidenciado na comunicação científica do país.

Em resposta a uma solicitação do Portal de Periódicos Fiocruz, o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde  (Bireme/Opas/OMS) divulgou uma nota no dia 8/3 (veja o PDF anexo no fim desta matéria), afirmando que: “a disponibilização e compartilhamento de dados básicos de pesquisa científica são uma forte tendência na moderna comunicação científica e têm por finalidade aumentar a reprodutibilidade, confiabilidade e transparência dos experimentos, especialmente ensaios clínicos". Defensora do acesso aberto, "a Bireme está inclinada a apoiar a proposta do ICMJE sobre o compartilhamento de dados de participantes de ensaios clínicos. Antes de confirmar esta ação, faz-se necessário avaliar a obrigatoriedade desta recomendação para os periódicos indexados nas bases da BVS, do Brasil e dos demais países da América Latina e Caribe. Desta forma, a Bireme irá formar uma comissão para estudar o tema e oportunamente tornar pública sua decisão”.

O assunto vem motivando iniciativas em todo o mundo, reforçando a necessidade de promover e ampliar o debate sobre a proposta com editores, indexadores, redes de pesquisa clínica, agências reguladoras, indústrias, comunidade acadêmica e sociedade em geral. De acordo com o Committee on Data for Science and Technology, há uma urgência para que as grandes entidades representativas da ciência internacional incentivem os dados abertos como importante meio para maximizar a criatividade das pesquisas, mantendo o rigor científico e garantindo que o conhecimento seja um bem público global, e não apenas um bem privado.

Nesse sentido, a coordenadora de comunicação científica da Bireme/Opas/OMS Lilian Nassi-Calò, em texto publicado no blog SciELO em Perspectiva em setembro de 2015, já sinalizava a decisão do prestigiado periódico British Medical Journal a respeito da exigência de dados abertos para a publicação de todos os ensaios clínicos,  e não somente daqueles com medicamentos e dispositivos, para os quais essa exigência já era observada desde 2013. Lilian destacava também a política da OMS e da Nordic Trials Alliance de incentivar a transparência dos resultados de ensaios clínicos.

No Brasil, em setembro de 2014, o Programa SciELO divulgou novos critérios de admissão e permanência de periódicos. Recomendava-se que os dados das pesquisas utilizados nos artigos estivessem depositados em repositórios de acesso aberto, seguindo padrões de registro que assegurassem a autoria, o uso e a citação, tanto dos dados como dos artigos correspondentes. O objetivo era contribuir para a replicabilidade, a visibilidade e as citações das pesquisas e dos periódicos.

Antes, em 2013, um editorial dos Cadernos de Saúde Pública, assinado pelo vice-diretor de Pesquisa, Ensino e Desenvolvimento Tecnológico do Icict/Fiocruz, Josué Laguardia, discutiu o acesso aberto, a transparência e a qualidade das informações dos ensaios clínicos, ressaltando o compromisso com a divulgação dos resultados de todos os pacientes envolvidos (preservando, evidentemente, sua anonimidade). Além das noções de altruísmo e bem público comum, o texto destacava o propósito de reduzir o viés de publicação e a duplicidade desnecessária de esforços de pesquisa. Apontava também para o maior valor agregado ao estudo que fornece uma fonte de informações confiáveis e não enviesadas para revisões sistemáticas, metanálises e diretrizes baseadas em evidências.

Diferentes atores, diferentes papéis

A Bireme informou que cinco universidades estaduais e federais do Brasil (USP, Unicamp, UFPB, UFSM e Uema) estabeleceram parceria com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) para criar e gerenciar um repositório de armazenamento de dados digitais". Muitas outras iniciativas nesse sentido estão em desenvolvimento na América Latina.

Para Laguardia, a geração de grandes volumes de dados a partir de pesquisas científicas coloca um desafio aos pesquisadores e aos discentes de programas de pós-graduação. "O pesquisador deve assegurar que os dados disponíveis sejam verdadeiros, completos e íntegros, enquanto os registros de ensaios clínicos devem possibilitar que os dados das pesquisas registradas em suas bases estejam em formato acessível", diz.

A primeira plataforma de registro de ensaios clínicos da América Latina, o ReBECfoi criada em parceria com o Ministério da Saúde (MS), Anvisa e Bireme/Opas/OMS. Considerado o maior registro primário das Américas. O ReBEC só fica atrás do Clinical Trials, que não faz parte do International Clinical Trials Registry Platform (ICTRP/OMS).

O ReBEC é um programa do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Sua coordenadora Luiza Rosangela Silva destaca aspectos como transparência, a facilidade de reutilizara informação em língua portuguesa e publicar em inglês, o que confere visibilidade internacional aos registros. Embora não conte com orçamento específico e trabalhe com uma equipe pequena, já há planos para lançar outra plataforma, com novas ferramentas e funcionalidades, e ampliar a recepção de estudos realizados fora do país.

Para Laguardia, o ReBEC “pode servir tanto como fonte de dados de estudos intervencionais realizados no Brasil e na América Latina, quanto como um sítio para o desenvolvimento de metodologias de armazenamento, recuperação, curadoria e disseminação da informação científica desses estudos”. Ele destaca ainda a atuação das áreas de ensino e financiamento: "Cabe aos programas de pós-graduação estimular seus alunos a utilizar os dados para elaborar monografias e dissertações, desenvolvendo novas metodologias de análise e fortalecendo a expertise de suas instituições no uso de dados secundários. O papel das instituições financiadoras, sejam públicas, não-governamentais ou filantrópicas, é garantir que os dados gerados pelas pesquisas que elas financiam estejam disponíveis para uso pelos interessados, salvaguardando os aspectos relativos à privacidade, à segurança e ao uso comercial no interesse público".

Entretanto, a publicação aberta dos dados ainda esbarra em uma série de dificuldades, particularmente no que se refere ao patrocínio das pesquisas clínicas, que, muitas vezes, recebem importante aporte financeiro de indústrias farmacêuticas internacionais. "Há contratos por meio dos quais a indústria decide se vai publicar ou não os resultados da pesquisa, dependendo se a favorecem ou não", lembra o vice-diretor de Pesquisa Clínica do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), André Curi. "Avançamos bastante na questão da pesquisa clínica. Hoje existem grupos brasileiros muito fortes, com toda a capacidade de realizar os ensaios, mas ainda dependemos quase que exclusivamente do capital internacional para a execução desse trabalho. Para mudar de patamar, seria fundamental um investimento mais efetivo de organismos nacionais nos ensaios clínicos, para que não houvesse a necessidade de seguir determinações da indústria", destaca.

Oportunidades e desafios do compartilhamento de dados de ensaios clínicos foram discutidos em um artigo publicado em 2014 no Biometrical Journal. No mesmo ano, dessa vez no BMJ, artigo intitulado Não publicação e publicação tardia dos ensaios randomizados sobre vacinas evidenciava que estudos não patrocinados pela indústria eram mais propensos a relatar dados negativos. Já em editorial recente (mar/2016), o BMJ discute a transparência dos dados de ensaios clínicos e faz considerações sobre a indústria.

A complexidade da questão reforça a importância da atuação da Rede Fiocruz de Pesquisa Clínica (RFPC), que reúne grupos de pesquisa da instituição, a fim de fortalecer seu papel estratégico nesse campo. A Rede busca a superação da vulnerabilidade tecnológica nacional, contribuindo para o alcance de autonomia, suficiência e racionalidade no que se refere aos processos e produtos acessíveis ao cuidado da saúde da população brasileira. A consulta pública do ICMJE será alvo de debates no âmbito da Rede, que, em breve, divulgará seu posicionamento em relação à proposta. Está agendada uma reunião para o dia 13/4 (quarta), às 14h30, com o objetivo de ouvir a opinião dos profissionais da Fiocruz. Será semipresencial, com transmissão por webconferência. Mais informações: pesquisaclinica@fiocruz.br

Saiba mais: confira o infográfico com o passo-a-passo para registrar e publicar ensaios clínicos

* Juliana Reis é editora convidada do Portal de Periódicos Fiocruz.
Fernanda Marques é assessora de comunicação da Editora Fiocruz.

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