Entrevista "Fala aê, pesquisadora: sedação paliativa, Covid-19, ética e direito"

Fernanda Marques (Fiocruz Brasília)

A confusão entre os conceitos de sedação paliativa e eutanásia é comum, e veio à tona recentemente, na pandemia da Covid-19, durante a crise de Manaus, onde faltaram balões de oxigênio e os médicos precisaram sedar pacientes que se encontravam em intenso sofrimento respiratório. 

Quando um paciente está numa situação de grande sofrimento porque apresenta sintomas graves para os quais as terapêuticas possíveis não surtem efeito, é lícito, ético e técnico oferecer a ele a sedação paliativa, que traz alívio ao adormecer e reduzir a consciência da pessoa enferma. Aplicada de forma correta e cuidadosa, esta conduta busca conforto para o paciente, mas é também cercada de riscos, até mesmo pela gravidade do quadro da doença. Embora exista um risco de morte, a sedação paliativa não deve ser confundida com a eutanásia – uma prática proibida no Brasil que consiste numa morte provocada deliberadamente com o intuito de eliminar o sofrimento.

A possibilidade da sedação paliativa, contudo, não pode justificar a falta de investimentos para que os recursos adequados, indicados e devidos estejam disponíveis para os pacientes. A temática é discutida em artigo da última edição da revista Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (Ciads), publicação do Programa de Direito Sanitário (Prodisa) da Fiocruz Brasília. No trabalho, a autora Maria Elisa Villas-Bôas, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), analisa a qualificação ético-legal da sedação paliativa, distinguindo-a de outras condutas, a partir de um estudo exploratório bibliográfico.

Nesta entrevista da série “Fala aê”, a pesquisadora comenta importância dos cuidados paliativos e de se conhecer os conceitos, destaca a responsabilidade acerca da sedação e coloca em debate a crise ocorrida em Manaus, fazendo uma crítica aos processos que levam à chamada mistanásia, isto é, a morte evitável causada por falta de recursos. A entrevistada desta semana é graduada em Direito e em Medicina, possui especialização em Pediatria, mestrado e doutorado em Direito Público.

O que motivou o estudo sobre aspectos éticos e jurídicos da sedação paliativa? 

Maria Elisa Villas-Bôas: Vivemos tempos de muitas e rápidas informações, mas muitas delas equivocadas, truncadas, provocando julgamentos morais acerca de situações de que pouco se sabe de fato. O estudo que motivou o artigo foi desencadeado pela percepção de que, no auge da angústia gerada pela pandemia e agravada pela situação de escassez, ainda se ampliava o sofrimento coletivo com assimilações indevidas entre conceitos envolvendo o fim de vida. Isso fez aumentar o preconceito acerca de condutas paliativas que se têm tentado cuidadosamente explicar e difundir no conhecimento social, pela importância que elas têm para os pacientes graves e suas famílias.

O que é sedação paliativa, quando e de que forma deve ser utilizada? 

Maria Elisa Villas-Bôas: A sedação paliativa consiste, de forma resumida, em se recorrer à sedação – que reduz a consciência e a interação – como forma de aliviar sintomas graves que não responderam às outras tentativas terapêuticas possíveis. Ela pode ser utilizada de forma intermitente (o paciente intercala períodos de sedação e vigília) e não apenas como sedação terminal, quando o desfecho de morte se aproxima de forma inexorável, e a sedação é a única maneira de esperar por ele sem a dor e o sofrimento dos sintomas refratários. Veja que, em qualquer dos casos, o objetivo da sedação não é causar ou antecipar a morte, mas paliar, amenizar sintomas que não se conseguem conter com outros fármacos ou recursos. Para tanto, ela deve ser conduzida da forma mais cuidadosa possível, de maneira a minorar os riscos de, pela vulnerabilidade mesma da condição do enfermo, vir a antecipar de modo evitável eventual desfecho de morte.

 

Por que chamar a sedação paliativa de sedação terminal pode causar confusão? 

Maria Elisa Villas-Bôas: Porque a sedação na fase de terminalidade do paciente é apenas um dos usos possíveis da sedação paliativa. Ainda existe o preconceito de que a sedação terminal tem o escopo de provocar a morte de forma deliberada e, dessa forma, ela seria uma conduta ilícita no ordenamento jurídico brasileiro. Ocorre que a terminalidade aí referida não foi causada pela sedação, cuja função fundamental é paliar. A sedação foi chamada de terminal apenas em menção ao estado atual do paciente, que se aproxima de modo iminente e inevitável do momento da morte, em virtude da própria doença de base, cujos efeitos a sedação objetiva minorar, sem a intenção de causar o óbito.

Por que a sedação paliativa não deve ser confundida com a eutanásia e outras condutas relacionadas à terminalidade e à morte? 

Maria Elisa Villas-Bôas: A eutanásia consiste, segundo o entendimento mais frequente, em uma morte provocada deliberadamente, com o fim de eliminar o sofrimento do enfermo, como solução em si. A ideia da provocação deliberada da morte seria o destaque de vedação em nosso ordenamento. Ou seja, na eutanásia, a morte seria o “remédio” último. Já na sedação paliativa, a intenção não é levar à morte, mas suspender os sintomas, como dor, vômitos etc., que já não são mais controláveis por outros meios, ainda que, para isso, seja preciso adormecer e reduzir a consciência do paciente, a fim de paliar, amenizar sua situação. Na fase de terminalidade – que, como visto, decorre do quadro ou doença de base, e não da sedação –, pode acontecer que o paciente, já em processo de morrer inevitável, não consiga mais sair da sedação. É um risco que precisa ser informado e prevenido, mas isso não significa que a sedação seja feita com o objetivo de eutanásia. A sedação paliativa bem indicada e bem conduzida se acha no campo da chamada ortotanásia, no sentido da morte a seu tempo, da forma mais natural possível, combatidos os sintomas que levam a um processo de morrer mais sofrido desnecessariamente.

Leia a entrevista completa feita por Fernanda Marques no portal da Fiocruz Brasília.

 

Maria Elisa Villas-Bôas é professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e autora do artigo “Considerações ético-legais sobre a sedação paliativa: a discussão que a pandemia trouxe à tona no norte do Brasil”, publicado na edição de abril/junho de 2023 dos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (Ciads).

Este portal é regido pela Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, que busca garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto ao conteúdo integral de toda obra intelectual produzida pela Fiocruz.