Eloy Rodrigues: pioneiro no debate sobre acesso aberto

Ana Furniel | Fotos: Vinícius Marinho e Amanda Simões (Multimeios/Fiocruz)

Eloy: momento de transição

Em entrevista ao Portal de Periódicos Fiocruz, Eloy Rodrigues, pioneiro nas discussões sobre acesso aberto (AA), aborda diversos temas na atual pauta sobre publicação da pesquisa. Diretor dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho (Portugal), ele é responsável pela implantação do RepositóriUM e coordenador científico e técnico do projeto Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP).

Eloy trata da relação entre acesso aberto e o modelo de construção e difusão do conhecimento, novos rumos do movimento AA, visibilidade e impacto dos resultados da pesquisa, a ligação entre os dados científicos abertos e as publicações, métricas de pesquisa e fator de impacto. Para ele, o momento atual é de transição: "Essa transição será liderada pela comunidade científica e suas instituições (as universidades e os financiadores da pesquisa)?. Ou, pelo contrário, será conduzida em função dos interesses e dos pontos de vista da indústria da informação científica e dos grandes grupos editoriais, mantendo o domínio estabelecido nas últimas décadas?", provoca. Leia a entrevista completa abaixo.

Portal de Periódicos Fiocruz: A Fiocruz escolheu o tema "Ciência, sociedade e política de publicação" para sua Aula Inaugural em 2015, ministrada por Hebe Vessuri, doutora em Antropologia Social pela Universidade de Oxford. Como os periódicos em acesso aberto podem transformar a forma de fazer ciência? O acesso aberto (AA) pode afetar o modelo de construção e difusão do conhecimento? Pode-se falar num modelo menos competitivo?

Eloy Rodrigues: O acesso aberto, seja por meio dos periódicos ou dos repositórios, terá impacto no conjunto da atividade científica e de pesquisa. Esse impacto será, simultaneamente, o de abrir as portas ao futuro e a novas formas de realizar a pesquisa, e também o de retomar a velha tradição de partilha, distribuição alargada e reutilização do conhecimento produzido, que sempre caraterizaram a atividade científica.

A disseminação, circulação e partilha da informação e do conhecimento entre os pares (e as mentes curiosas) sempre foi o modo “normal” do inquérito intelectual, do funcionamento da atividade acadêmica e científica. A ciência normal, tal como definida por Thomas Khun, é cumulativa e se baseia no acesso e utilização do conhecimento previamente construído. Mas mesmo nos momentos das revoluções científicas e de mudança de paradigma, como Newton reconheceu[1], o acesso e a utilização do conhecimento anterior é a base para a construção do novo conhecimento. O acesso aberto aos resultados da pesquisa parece corresponder assim a uma característica intrínseca à atividade científica, e a uma condição necessária para garantir a geração de novo conhecimento de uma forma eficiente.

Nos dias de hoje e para o futuro, quando a ciência é chamada a ajudar a enfrentar e resolver ameaças e problemas globais - como as alterações climáticas e os riscos de pandemias - uma das medidas para garantir que o contributo científico é mais rápido e eficiente é a disponibilização e partilha de toda a informação relevante (desde os dados brutos até as publicações) sobre cada um desses problemas.

O acesso aberto promove a disseminação dos resultados da pesquisa, acelera e alarga a sua circulação, disponibilidade e utilização, criando condições para acelerar também o ritmo da pesquisa e do progresso científico. Outros efeitos previsíveis do acesso aberto são o alargamento das fronteiras geográficas, disciplinares ou institucionais e a facilitação de pesquisas transdisciplinares, multi-institucionais e verdadeiramente internacionais, bem como o aumento da utilização de técnicas de data mining e text mining, não apenas métodos e ferramentas de pesquisa,  como também ferramentas de monitorização, escrutínio e avaliação do desempenho dos pesquisadores e das suas organizações.

Assim, o acesso aberto facilita a cooperação e o trabalho em equipe na pesquisa científica. Entretanto, não estou seguro de que possamos dizer que promova um modelo menos competitivo. Aliás, como na generalidade das atividades humanas, a cooperação e a competição estão presentes. Ambas são úteis e necessárias na atividade científica. A vantagem do acesso aberto é que não apenas facilita e promove a cooperação, como cria condições para que a competição se faça com igualdade de oportunidades (no que diz respeito ao acesso à literatura científica), premiando justamente quem formular as melhores perguntas, fizer as melhores análises e encontrar as melhores respostas, e não beneficiando injustamente quem apenas tem acesso os melhores recursos.

PP Fiocruz: Qual a sua avaliação sobre o impacto do movimento e das políticas de acesso aberto ao conhecimento nas diferentes instituições de pesquisa científica em relação à visibilidade e às citações dos artigos?

Eloy Rodrigues: A maioria dos estudos realizados na última década concluíram pela existência de um acréscimo de visibilidade e impacto (principalmente quanto ao número de citações) das publicações disponíveis em acesso aberto (para uma síntese dos estudos e dos resultados ver The Open Access Citation Advantage). Quero sublinhar em especial os vários estudos – como o de Gargouri e outros (2010) ou mais recentemente de Atchinson e Bull (2015) – que confirmam: para o mesmo universo (institucional, no caso do estudo de 2010, ou disciplinar, no de 2015), os artigos em acesso aberto através dos repositórios têm mais citações do que aqueles simplesmente publicados e disponíveis em revistas tradicionais.  

A vantagem do acesso aberto na visibilidade e no impacto dos resultados da pesquisa, beneficia não apenas os pesquisadores individualmente, como também os grupos, projetos e instituições de pesquisa onde estão enquadrados. Por outro lado, o impacto do acesso aberto na visibilidade da atividade de pesquisa não se limita ao aumento do número de citações nem fica confinado à comunidade científica, porque torna os resultados de pesquisa acessíveis a todos aqueles a quem esses resultados possam interessar. O acesso aberto amplia a visibilidade e o impacto através de outras formas de “citação” (como as menções nas redes sociais), e facilita a apropriação, utilização e reconhecimento das publicações científicas pelo conjunto da sociedade (por exemplo, no contexto da educação superior ou pré-universitária, ou dos grupos de interesse relacionados com doenças e saúde).

É também por este impacto, para além da comunidade científica, que o acesso aberto é importante do ponto de vista das instituições de pesquisa. Hoje, há evidências crescentes (como através de rankings de visibilidade web) de que as instituições que têm políticas ativas de acesso aberto e que disponibilizam sua produção científica dessa forma obtêm maior visibilidade e reconhecimento.

PP Fiocruz: O movimento AA se difundiu no mundo. Hoje, pode-se afirmar que é irreversível garantir acesso aos resultados das pesquisas científicas. No Brasil, apesar do enorme avanço em repositórios institucionais, ainda não há uma política governamental que regule e incentive o acesso aberto nas universidades, instituições etc. Em que medida a adoção de uma política governamental colabora para os avanços nesta área? 

Eloy Rodrigues: A experiência da última década revela que as políticas, especialmente as de caráter obrigatório ou mandatório, como são usualmente designadas, são decisivas para o progresso do acesso aberto. As atuais políticas têm sido definidas em vários níveis e por diversas entidades. As políticas mais comuns são as das instituições de pesquisa (como as universidades e outros centros de pesquisa), que por iniciativa própria têm aprovado e implementado políticas institucionais requerendo o depósito em repositórios. O segundo mais importante grupo de políticas de acesso aberto é a de agências de fomento, que em número crescente demanda que as publicações resultantes das pesquisas que financiam fiquem disponíveis em acesso aberto. Finalmente, em diversos países (sobretudo na América Latina, mas também na Europa, e nos Estados Unidos), foram aprovadas políticas governamentais, ou leis nacionais, de acesso aberto.

Estou certo de que uma política governamental, ou uma lei nacional como já foi proposta[2], contribuiria para o acesso aberto no Brasil. Mas me parece importante sublinhar dois aspectos. Primeiro, qualquer política nacional não dispensa ou diminui a importância da definição de políticas pelas instituições de pesquisa (como a que a Fiocruz oportunamente já aprovou) ou pelas agências financiadoras de pesquisa. Em segundo lugar, para assegurar a eficácia das várias políticas, será muito importante que sejam convergentes, ou seja: que definam requisitos semelhantes, com base na experiência e nas boas práticas internacionais. Neste sentido, de acordo com os resultados da análise das políticas existentes, que será divulgada pelo projeto PASTEUR4OA, em breve, para otimizar os seus resultados, as políticas de acesso aberto devem: a)  ser baseadas no requisito do depósito imediato dos documentos,  no momento da sua publicação, em repositórios; e b) o cumprimento deste requisito deve estar associado aos procedimentos de avaliação.

PP Fiocruz:  Você foi um pioneiro e militante do acesso aberto, contribuindo significativamente com a experiência da Universidade do Minho. O que poderia nos adiantar sobre o futuro? Como você vê essas novas frentes em relação ao AA, como "dados abertos", " pesquisa aberta" , "recursos educacionais abertos" e " ciência aberta"?

Eloy Rodrigues: Para mim, o acesso aberto é um componente fundacional e indispensável da ciência aberta (ou pesquisa aberta), que implica também dados abertos e novas metodologias e infraestruturas de pesquisa. Por isso, vejo com muito entusiasmo e muita esperança o crescente apoio e as cada vez mais numerosas iniciativas relacionadas à ciência aberta e aos dados abertos. Por exemplo, considero muito interessantes e promissoras as iniciativas e projetos que promovem a ligação entre os dados científicos abertos e as publicações, permitindo “associar” estes dois tipos de resultados de pesquisa, promovendo a reutilização e “citação” de dados, o aparecimento de novos tipos de publicações, mais dinâmicas e enriquecidas etc. Vejo isso como uma área de grande futuro, assim como vejo um futuro muito interessante nos domínios do monitoramento e avaliação da pesquisa, especificamente das métricas de pesquisa, terminando com o absurdo de uma métrica (o fator de impacto) criada para avaliar a qualidade dos periódicos estar sendo usada para avaliar pesquisadores e instituições de pesquisa.

Mas, se penso que é muito importante trabalharmos já nessas áreas de futuro, julgo também que ainda temos de manter o foco no avanço e na consolidação do acesso aberto. É verdade que houve um progresso notável na última década e, na minha opinião, já se tornou inevitável e será dominante na comunicação científica num futuro não muito distante. Mas também é verdade que estamos num momento muito importante, no qual existem ainda muitas dúvidas e incertezas sobre os caminhos e as formas como o acesso aberto será consolidado. Por isso, é necessário continuar a focar no objetivo: concretizar o acesso aberto, não só o mais rapidamente possível, mas também de acordo com os interesses da comunidade científica e das instituições de pesquisa - e não sob o comando da indústria de publicação.

PP Fiocruz: Iniciativas como a da Fiocruz, de lançar um portal web integrando todas suas revistas científicas, com acesso aberto, podem ser uma forma de alavancar a discussão em torno do AA com as editoras responsáveis pelos periódicos?

Eloy Rodrigues: Sem dúvida. Como acabei de dizer, se o acesso aberto parece ser inevitável, ainda está em aberto quem terá maior capacidade de liderar e conformar esse processo de transição em curso, que se prolongará por alguns anos. A transição será liderada pela comunidade científica e as suas instituições (as universidades e os financiadores da pesquisa)? Ou, pelo contrário, será conduzida em função dos interesses e dos pontos de vista da indústria da informação científica e dos grandes grupos editoriais, mantendo o domínio estabelecido nas últimas décadas?

No primeiro caso, as instituições de pesquisa, para além de políticas e repositórios institucionais de acesso aberto (a chamada Via Verde), devem também promover iniciativas de publicação ou apoio à publicação em acesso aberto (a chamada Via Dourada), em especial através de projetos que não usem o pagamento de taxas de publicação. O desenvolvimento de iniciativas, plataformas e serviços institucionais para a publicação de revistas e livros em acesso aberto é uma das vias que tem sido crescentemente explorada em todo o mundo, para criar um modelo sustentável para a publicação científica não baseado em taxas de publicação de valor elevado.

Assim, ao lançar o seu Portal de Periódicos, que se soma ao repositório e à política institucional de acesso aberto, a Fiocruz se coloca na linha de frente das instituições que promovem o acesso aberto, e mais: contribui para que essa transição se faça de um modo sustentável e de acordo com os interesses dos pesquisadores e das suas instituições. Para que, no futuro, não venha a ocorrer o absurdo de que as dificuldades de acesso à literatura - que hoje muitos investigadores ainda conhecem - sejam substituídas pela dificuldade de publicar seus resultados. Parabéns à Fiocruz e a todos os que contribuíram para a sua concretização, por mais este passo na direção certa.

Notas

[1] “What Des-Cartes [sic] did was a good step. You have added much several ways, & especially in taking the colours of thin plates into philosophical consideration. If I have seen further it is by standing on the sholders [sic] of Giants.” - Isaac Newton - Carta para Robert Hooke, 15 de Fevereiro de 1676

[2] Projeto de lei 1120/2007 e  Projeto de Lei do Senado PLS 387/2011 ambos promovidos por Rodrigo Rollemberg

 

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