O Nexo Jornal publicou um texto em 14 de maio de 2025 salientando a necessidade de redefinir a internacionalização da publicação científica em um contexto global multipolar. O texto assinado por Marilia Sá Carvalho, Luciana Dias de Lima e Luciana Correia Alves, coeditoras-chefe de Cadernos de Saúde Pública, exalta a importância de políticas públicas que incentivem a colaboração internacional e a inclusão de diferentes regiões no cenário científico global. Leia a seguir.
Internacionalização da publicação científica em um mundo multipolar
A publicação de artigos científicos deveria significar o compartilhamento do conhecimento gerado entre todos os cientistas que trabalham no mesmo tema. É assim que a ciência avança: pela troca, pelo diálogo, pela crítica. Por isso mesmo, a internacionalização dos periódicos publicados no Brasil é discussão relevante.
Entretanto, a busca pela internacionalização das revistas acadêmicas carrega uma série de contradições. Entre as limitações, está a barreira linguística enfrentada por pesquisadores de países não anglófonos. Além disso, autores de países centrais somente publicam no Brasil artigos feitos em parceria com autores nativos e quase nunca aceitam convites para participar de comitês editoriais ou avaliarem artigos.
O acesso aberto, com seu potencial para ampliar a internacionalização, é viabilizado por meio de taxas cobradas dos autores, agências de financiamento e instituições. Estima-se que cientistas tenham desembolsado mais de 1 bilhão de dólares em quatro anos para publicar em acesso aberto nesses veículos. Essa concentração e o alto custo dificultam a inserção de periódicos e pesquisadores de países com menos recursos e, consequentemente, a divulgação de resultados de pesquisas dessas regiões, ampliando a desigualdade. É sempre bom lembrar que apenas seis conglomerados controlam o mercado editorial científico, com margens de lucro espantosas e ética por vezes duvidosa.
O Portal de Periódicos da Capes, criado em 2000, disponibiliza os artigos de mais de 50.000 revistas científicas para cerca de 500 instituições brasileiras, tornando acessível o conhecimento produzido em diversos países. Recentemente, a Capes assinou acordos transformativos com editoras comerciais, garantindo, no mesmo contrato, o acesso aberto e o pagamento das taxas de publicação. O objetivo é facilitar a publicação nesses veículos, dando maior visibilidade à produção científica e tecnológica nacional. Além disso, a publicação nesses periódicos poderá beneficiar pesquisadores com acesso limitado a financiamento, particularmente aqueles cujos projetos não contam com recursos adequados para arcar com as taxas exigidas pelas revistas científicas. Entretanto, em 2025, o contrato da Capes com a editora Wiley custou US$ 8,3 milhões (dado obtido via Lei de Acesso à Informação, protocolo 23546.018379/2025-17). Não é pouco.
Os acordos transformativos combinam internacionalização receptiva, na qual se lê o que está sendo produzido no exterior, e exportadora, que busca divulgar a ciência produzida localmente. Ambos os processos são inerentes a um mundo unipolar, no qual o ‘Sul Global’ está, por definição, em posição subalterna. Em contraposição, o chamado ‘Norte Global’ — que abrange países como os Estados Unidos, o Japão e diversas nações europeias — concentra os principais centros de pesquisa, dispõe dos maiores recursos para financiamento científico, edita a maior parte dos periódicos de alto fator de impacto e, consequentemente, estabelece os parâmetros de excelência científica em escala mundial.
A ciência é um patrimônio coletivo de todos os povos, culturas e territórios. Assim, os caminhos da internacionalização devem servir para ampliar o acesso, a diversidade e a relevância do conhecimento, e não para reproduzir assimetrias geopolíticas ou epistemológicas.
Nesse contexto, a internacionalização se configura como uma via de mão única, marcada pela subalternidade do conhecimento produzido no ‘Sul Global’. Assim é estabelecida uma hierarquia de conhecimentos, no qual as experiências, problemas e soluções originadas no Sul são invisíveis, a menos que sejam filtradas, traduzidas (inclusive simbolicamente) e aceitas por instituições do ‘Norte Global’. Mesmo os processos de avaliação dos programas de pós-graduação e dos cientistas brasileiros prestigiam a publicação em periódicos de alto impacto segundo métricas voltadas para o conhecimento produzido nos países centrais.
As consequências dessa dinâmica são graves. Práticas e políticas exitosas, como a Estratégia Saúde da Família, por exemplo, são percebidas como respostas locais a problemas também locais e não como inovações com potencial de contribuição universal. Como resultado, os saberes produzidos em diálogo com realidades complexas deixam de circular amplamente, enquanto se reforça um modelo de ciência unidirecional, centrado nos países mais ricos e nas grandes editoras internacionais.
É necessário rever o conceito de internacionalização no campo da publicação científica. Uma revista é dita internacional por seu papel de concentração da submissão de artigos de todo o mundo, com hegemonia científica dos países centrais e drenagem de recursos que poderiam ser aplicados na produção do conhecimento em si. Certamente as revistas do ‘Norte Global’ são internacionalizadas, mesmo quando no seu nome levam a palavra “American”.
Levar o conhecimento produzido em um país para outros, seja publicando ou incorporando-o às pesquisas desenvolvidas em diversos países, é necessário. Entendemos a ciência como um bem público universal. Como levar artigos sobre temas certamente relevantes no cenário nacional para outras realidades que também se beneficiariam desse conhecimento? Pagando taxas de publicação? Internacionalização assim não é uma via de mão dupla, com espaço nos dois sentidos, mas mais um componente do colonialismo. À medida em que novos polos científicos emergem, internacionalização não pode mais ser sinônimo da relação com países do hemisfério Norte. Por exemplo, o SciELO – Scientific Electronic Library Online -, pioneiro no acesso aberto, reúne periódicos de 15 países, com 127 revistas no campo das ciências da saúde.
Analisar como esse processo se configura, tanto no que se refere às redes de colaboração quanto ao local de publicação, é a tarefa que está colocada para a construção de um modelo multipolar da publicação científica. Mais do que a busca por posições em rankings, trata-se de assegurar que o conhecimento produzido no Brasil circule, seja reconhecido e contribua de maneira efetiva para o avanço da ciência. O papel dos Brics na liderança de um mundo multipolar pode ser um grande estímulo para a comunicação da ciência produzida nos países periféricos.
A ciência é um patrimônio coletivo de todos os povos, culturas e territórios. Assim, os caminhos da internacionalização devem servir para ampliar o acesso, a diversidade e a relevância do conhecimento, e não para reproduzir assimetrias geopolíticas ou epistemológicas. Nem uma única história, como fala Chimamanda Ngozi Adichie, nem uma ciência limitada a uma só visão de mundo.
Texto assinado por:
Marilia Sá Carvalho é coeditora-chefe de Cadernos de Saúde Pública.
Luciana Dias de Lima é coeditora-chefe de Cadernos de Saúde Pública.
Luciana Correia Alves é coeditora-chefe de Cadernos de Saúde Pública.